Introdução
Sete anos após a intervenção militar no Iraque, importa olhar para o que de mais importante marcou o debate político português, relevante para a tomada de decisão do governo. Recuámos no tempo para acompanhar de perto o que se discutiu na Assembleia da República e ajudou a moldar a posição portuguesa face aos desenvolvimentos que o dossier iraquiano ia impondo a Lisboa, aos seus principais aliados e às organizações de que fazia e faz parte.
Além disso, recuperou-se a imprensa da época, entrevistas concedidas pelos seus protagonistas, nomeadamente o Primeiro-ministro Durão Barroso, o líder do maior partido da oposição, Ferro Rodrigues e o Presidente da República, Jorge Sampaio.
Para além do debate político, este trabalho centrou-se também na Cimeira das Lajes, que comemora, precisamente hoje, sete anos. Portugal assumiu um papel de anfitrião e de protagonista internacional num encontro que definiu o fim do trajecto diplomático em relação ao Iraque e o início de uma intervenção polémica e profundamente marcante para as lideranças políticas que a ela se associaram. Este ensaio tem por base as fontes conhecidas e disponíveis até hoje pelo que é ainda difícil compor os factos e as análises subjacentes com outro tipo de informações. Todavia, isso não invalida o desenvolvimento posterior do seu conteúdo.
Um problema chamado Iraque
O Iraque não fez parte do debate português após os ataques de 11 de Setembro de 2001 e durante grande parte de 2002. A discussão pública neste período foi marcadamente ideológica um pouco por todo o mundo e, no caso português, focada na intervenção militar no Afeganistão. Em nenhum momento desta fase do debate político nacional, o Iraque foi associado ao terrorismo islamita ou sequer a um qualquer projecto de mudança de regime que promovesse uma arquitectura internacional menos hostil ao Ocidente.
O Iraque começa a surgir nas intervenções dos principais decisores políticos ocidentais – nomeadamente George W. Bush e Tony Blair[1] – no início de 2002, quer no encontro de Crawford (6 de Abril) entre os dois, quer numa intervenção do Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Jack Straw (25 de Março), quando introduz um imperativo histórico na política externa britânica – a condição de pivotal power – para, por exemplo, “ [...] derrubar tiranos como Saddam e não deixar para a próxima geração a resolução destes problemas”.[2] A narrativa pós-11 de Setembro refutava, até ao final do primeiro trimestre de 2002, qualquer associação entre Saddam Hussein e os ataques às Torres Gémeas, como aliás confirmou John Scarlett, chefe do Joint Intelligence Committee britânico: “nós rapidamente estabelecemos que não existia nenhuma ligação entre Saddam e as Torres Gémeas”.[3]
No quadro europeu, há um registo da tomada de posição da União Europeia, através de uma declaração escrita pela presidência espanhola, no dia 20 de Maio de 2002, vinculando Portugal, onde se acolhia favoravelmente o diálogo entre o Iraque e as Nações Unidas “com vista a encontrar uma saída diplomática para a questão das armas de destruição maciça no Iraque, mediante a plena aplicação das resoluções do Conselho de Segurança”. Esse mesmo comunicado terminava com uma referência “ […] à crescente preocupação da comunidade internacional quanto à potencial utilização desses bens [de dupla utilização] em programas de armas convencionais ou de destruição maciça”.[4] O mesmo é dizer que a União Europeia partilhava das preocupações manifestadas pela Administração Bush e pelo governo Blair sobre a ameaça que o Iraque podia constituir – uma preocupação à qual Portugal se associava através deste comunicado –, embora optando por não entrar numa fórmula de retaliação pública em caso de incumprimento reiterado do regime de Bagdad.
Posteriormente, no Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas da União Europeia – a 22 de Julho e já presidido pela Dinamarca – os Estados-membros adoptam uma posição comum sobre o Iraque, reiterando a via das resoluções da ONU e do escrupuloso cumprimento das obrigações internacionais por parte de Bagdad.[5] Estas duas posições tomadas pela UE são relevantes, no sentido em que balizam aquilo que vai ser a primeira tomada de posição do governo português perante o seu Parlamento e a resposta do maior partido da oposição. /span>
A abertura e posterior evolução do tema em Washington e Londres forçaram os restantes aliados a pronunciar-se sobre a questão. Peter Stothard revela no seu livro que Blair e Bush discutiram entre eles a doutrina da guerra preventiva em Junho de 2002[6]. Mas seria um memorando secreto de preparação de uma reunião em Downing Street, escrito por um conselheiro para os assuntos externos de Tony Blair, Matthew Rycroft, em 23 de Julho de 2002, que transmitiu aos restantes membros do gabinete do Primeiro-ministro a percepção clara de uma decidida inclinação para a intervenção militar, por parte de membros da administração Bush, após conversas de ministros britânicos com homólogos americanos. Neste memorando, era mesmo referida uma ideia defendida pelo Ministro da Defesa britânico, Geoff Hoon, que apontava o início das operações militares para Janeiro de 2003.[7] O governo britânico estava ao lado da solução norte-americana.
Nove dias após se ter reunido com o presidente Bush na Casa Branca, o Primeiro-ministro Durão Barroso enfrentou o inevitável assunto pela primeira vez no Parlamento português[8]. Estávamos a 19 de Setembro de 2002 e Barroso aproveita o encontro mensal para trazer ao debate político o tema que a agenda internacional impunha. Por outras palavras, o governo português colocou em sede própria o ponto da situação sobre o Iraque, evitando assim confrontar-se com a oposição numa fase posterior e a pedido desta.
Barroso faz uma exposição começando pelo comportamento histórico do regime: a violação contínua das resoluções das Nações Unidas, uma renúncia à paz por parte de Saddam Hussein, por questões de sobrevivência, e o seu estado de “ameaça à segurança, que tem a ver com a ameaça global que o terrorismo representa”[9]. Ou seja, o Iraque é um incumpridor sistemático do direito internacional, é uma ameaça à segurança e, ao mesmo tempo, está associado ao terrorismo. A introdução não podia ter sido mais peremptória e procurava mostrar como um regime acumulava todas as variáveis necessárias para se tornar, na realidade, uma ameaça à segurança nacional, de acordo com as doutrinas de defesa definidas pela esmagadora maioria dos Estados aliados de Portugal e das organizações das quais faz parte.
Identificado o problema, Barroso abriu caminho à posição de Portugal, um comportamento que, nas suas palavras, passava pela explicação da ameaça, para que a “opinião pública a conheça em toda a sua extensão, o que pode significar um conflito com o Iraque e o que pode, e deve, significar a necessidade de travar a ameaça que aquele país, hoje, representa”. Por outras palavras, o governo português estava consciente que o uso da força – fosse ele organizado da maneira que fosse – poderia vir a estar em cima da mesa dos aliados de Portugal, e Lisboa teria que preparar uma posição. Posição essa que passaria, com este discurso no Parlamento, por garantir o mais alargado consenso político possível, de forma a diminuir os danos provocados por uma opinião pública contestatária.
Para confirmar esta fórmula, Durão Barroso propôs um exercício aos restantes deputados: “se tivesse de dizer hoje algo a Saddam Hussein, fá-lo-ia do seguinte modo (e gostaria que fosse esta não apenas a mensagem do Governo português, mas a mensagem da Assembleia da República, a mensagem de todo o povo português) – ‘Sr. Presidente, queremos evitar um novo conflito com o Iraque; esteve sempre na sua mão fazê-lo. Por isso, pense no seu povo e demonstre-nos, por acções concretas, que é também esse o seu desejo. Cumpra as resoluções das Nações Unidas. Respeite a comunidade internacional’”[10].
O Primeiro-ministro prosseguiu a sua intervenção destacando a posição iraquiana “de réu” perante a comunidade internacional, a excepcionalidade que todo este caso constitui – e que exigiria um tratamento excepcional – e que procurava, sobretudo desde o 11 de Setembro, ter uma política externa pró-activa na defesa das sua alianças e na resolução dos problemas internacionais. Ou seja, quando Barroso sublinha a acção pressionante dos aliados sobre o regime e o relativo sucesso que as mesmas provocaram – as autoridades iraquianas aceitaram o retorno dos inspectores das Nações Unidas no dia 16 de Setembro – era “isto a demonstração de que a pressão é o caminho certo para lidar com uma ditadura como aquela”[11]. Contudo, abriria todas as hipóteses possíveis: “[…] temos de manter a pressão, devemos compreender que a comunidade internacional não poderá, à partida, excluir qualquer opção, se desejar pressionar eficazmente aquele regime. O contrário equivaleria a beneficiar o infractor”.[12] Sobre a questão da pressão internacional e do retorno das inspecções da ONU, o líder do maior partido da oposição, Eduardo Ferro Rodrigues, acompanhava a posição do governo: “é um passo sem dúvida tardio, de um regime ditatorial, arrogante e que tem agido no mais completo desrespeito pela legalidade internacional”.[13]
Existiram neste debate três questões centrais e que merecem uma leitura mais atenta das posições dos partidos que apoiavam o governo, PSD e CDS, e do maior partido da oposição, o PS.
Em primeiro lugar, se era nesta fase relativamente consensual que a via da ONU deveria continuar a ser privilegiada e que o prevaricador era o Iraque, logo aquele que teria que demonstrar ter deixado ser uma ameaça internacional, existiu uma clara tensão política quando se tratava de equacionar o cenário de intervenção militar. Durão Barroso e a maioria parlamentar que o apoiava, não excluíam o uso da força: “eu apoio sem reservas as resoluções das Nações Unidas e só quero que elas sejam cumpridas! E se o Iraque cumprir as resoluções das Nações Unidas, não há qualquer razão para qualquer acção da comunidade internacional contra o Iraque!”.[14] Era evidente que a opção militar era já equacionada, não por Portugal, mas pelos aliados mais próximos, caso contrário não haveria necessidade do Primeiro-ministro abrir constantemente neste debate parlamentar essa hipótese. Ora, tal cenário foi desde logo afastado pelo Partido Socialista, com Ferro Rodrigues a ser peremptório: “uma acção unilateral, à revelia das Nações Unidas e da legalidade internacional — digamo-lo com clareza — carece de base de legitimidade. E devo dizer que não terá o nosso apoio!”.[15] Estava desde aqui marcado o que separaria o PS da maioria parlamentar, impossibilitando a abertura de um consenso mais alargado perante o cenário de uso da força por parte de aliados de Portugal.
A segunda grande questão central neste debate aproximou o PS do governo. E dizia respeito às prioridades estratégicas da relação a estabelecer com o Iraque. Ao contrário do que depois veio a distinguir com clareza os dois lados, era assumido por Barroso e Ferro Rodrigues que a ameaça constituída pelo regime de Saddam residia na sua tirania, no incumprimento das resoluções da ONU e, a partir daí, nas palavras do próprio líder do PS, “a tarefa que se coloca neste preciso momento à comunidade internacional é, efectivamente, despojar o Iraque de armas de destruição, impedindo que seja uma ameaça para a paz e segurança da região. O eventual uso da força deverá ser balizado por este objectivo e pela necessidade de acatamento das resoluções das Nações Unidas”[16]. Não podia ser mais claro: em Setembro de 2002 o governo português e o maior partido da oposição faziam uma leitura coincidente do caso iraquiano, apenas divergindo no que toca ao modo de resolver o problema, ou seja, usando a força militar (ou não), caso seja esse o modus operandi dos mais directos aliados.
Por fim, e neste preciso sentido, o governo manifestava uma certa cautela no estabelecimento de um arco alargado de consenso euro-atlântico para se evitar que, como diria Barroso neste debate parlamentar, “a relação transatlântica se venha a tornar numa baixa colateral”. É importante reter esta linha de raciocínio se quisermos perceber parte das razões invocadas posteriormente no debate político português para justificar a acção militar e a posição do governo.
Após a Resolução 1441
O mês de Novembro marca o início do debate político parlamentar acerca do conceito estratégico de defesa nacional. O Ministro da Defesa, Paulo Portas, esteve no hemiciclo a defender as linhas gerais do documento e que enquadravam as missões de Portugal no estrangeiro em consonância com as organizações de que fazia parte. Além disso, definia também as ameaças contemporâneas, entre elas o terrorismo e a proliferação de armas de destruição maciça, no quadro do que era estabelecido nas principais orientações estratégicas da NATO e União Europeia. Paulo Portas daria conta da importância e das dificuldades das negociações em curso no interior da Aliança Atlântica sobre a sua estrutura de comandos, entre eles o de Oeiras, quer pelos alargamentos em marcha, quer pela redução do próprio número de comandos.[17] Manter o de Oeiras seria um dos objectivos da defesa nacional durante os meses que se seguiram, o que obrigava por si só a um diálogo próximo e continuado com a Administração norte-americana. Seria o próprio Durão Barroso, já depois da intervenção militar no Iraque, a reconhecer no Parlamento que a manutenção do comando de Oeiras foi garantida pelo apoio de Portugal aos EUA.[18] Diga-se que o Ministro da Defesa foi sempre reservado nas suas apreciações públicas sobre o Iraque, uma vez que não fazia sentido ter uma intervenção mais audível quando não estava previsto que as Forças Armadas estivessem envolvidas (só no quadro da ONU), acabando por deixar a condução do tema ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, António Martins da Cruz, e sobretudo a Durão Barroso. As suas mais expressivas apreciações sobre a crise iraquiana, na esteira do que era defendido pelo Primeiro-ministro, só seriam verdadeiramente assertivas em Fevereiro de 2003, referindo-se à importância crucial do vínculo transatlântico para Portugal, dando conta da sua visão para as relações entre a Europa e os EUA para combater o terrorismo: “é [nesta] aliança que está a força suficiente para travar este combate”. Quanto ao Iraque, em concordância com o que iria ser a argumentação de Barroso, diria que “não queremos sinais de fraqueza ou tibieza, se o regime de Bagdad perceber que não há determinação da comunidade internacional para fazer cumprir 17 resoluções já votadas na ONU, não desarmará”.[19]
A procura de um consenso mais alargado – leia-se, o apoio de Paris e Berlim a par de uma resolução do Conselho de Segurança – deu o seu primeiro passo a 8 de Novembro de 2002, com a aprovação por unanimidade da Resolução 1441.[20] Em traços gerais, esta declaração focava alguns pontos relevantes. Em primeiro lugar, reconhecia o Iraque como uma ameaça, uma vez que se recusou quase sempre a cooperar com as inúmeras resoluções do Conselho de Segurança. Declarava-se, por sua vez, a ameaça que constitui a proliferação de ADM e os mísseis de longo alcance para a segurança e paz internacionais. Em seguida, sem afirmar que o Iraque possuía ADM, realçava o facto de o país nunca ter demonstrado às inspecções da ONU a totalidade dos seus programas de ADM, mísseis balísticos ou outros de cariz nuclear, bem como as suas localizações. Reprovaram-se, deste modo, todas as obstruções provocadas à Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM) e à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), assim como as respectivas expulsões dos seus inspectores em 1998 e que estiveram na origem da intervenção militar anglo-americana de Dezembro. Por tudo isto e em consonância com o facto de o Iraque ser uma ameaça à segurança e paz internacionais, o Conselho de Segurança tomou algumas decisões dignas de registo. Começou por dar ao Iraque uma última oportunidade em cooperar com as obrigações de desarmamento de acordo com as resoluções anteriores. Em seguida, foi atribuído um prazo de trinta dias para que o regime fornecesse uma declaração detalhada acerca de todos os aspectos do seu programa de armamento incluindo localização, componentes e stocks. Este relatório deveria ser entregue à UNMOVIC e à AIEA, tendo estas o entendimento que julgassem adequado sobre as informações que necessitam, de forma a obterem elementos do maior detalhe. O Iraque devia assegurar todas as condições e facilidades de acesso aos inspectores de forma imediata, incondicional e irrestrita. Enumeradas as prerrogativas que os inspectores possuíam e a obrigatoriedade do Iraque em cooperar, sem reservas, com os mesmos e com as disposições desta resolução, o parágrafo treze conclui o texto de forma eloquente: «recorda-se, neste contexto, que o Conselho avisou repetidamente o Iraque que sofreria sérias consequências em resultado da continuidade da violação das suas obrigações». Estávamos, deste modo, em face de um deadline dado pela comunidade internacional ao regime de Saddam Hussein.
A presidência dinamarquesa, em nome da União Europeia, emite uma declaração escrita após a aprovação da resolução 1441, saudando “a unanimidade”, a afirmação do papel do Conselho de Segurança “e a sua responsabilidade na manutenção da paz e da segurança a nível internacional”. Todavia, foi mais longe ao reconhecer que esta resolução representava um importante passo na via da eliminação das armas de destruição maciça no Iraque”, sendo que “esta oportunidade é a última de que o Iraque dispõe para honrar as suas obrigações de desarmamento”. Cinco dias depois, seria o texto das conclusões do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas a reforçar a posição conjunta da União Europeia em relação ao Iraque, a qual “tem um objectivo claro: o desarmamento do Iraque no que respeita às armas de destruição maciça [pelo que] o Conselho insta o governo do Iraque a aproveitar esta derradeira oportunidade para cumprir as suas obrigações de desarmamento”.[21] Ainda neste final de ano, o Conselho Europeu de Copenhaga (12 e 13 de Dezembro) manteria, grosso modo, os termos das outras duas declarações mencionadas.[22]
O que torna relevante estas declarações conjuntas dos Estados-membros? Em primeiro lugar, a concordância com o caminho seguido pela ONU para resolver o problema. Em segundo lugar, uma leitura – posteriormente adoptada por Washington – de que o texto da Resolução 1441 representava claramente a última oportunidade do Iraque em honrar as obrigações internacionais, permanentemente violadas desde 1991. Em terceiro lugar, assumiu-se que a Resolução 1441 era o caminho certo para a eliminação das armas de destruição maciça, ou seja, que todos os indicadores apontam para a sua existência. Estávamos a 14 de Novembro de 2002. Um mês depois, o chefe dos inspectores da ONU no Iraque, Hans Blix, declarava em relatório, existirem fortes indicações de que o Iraque produziu mais Antraz do que aquele que declarou até à data, assumindo, porém, o falhanço na colaboração do regime de Saddam Hussein e uma inconclusiva definição por parte da missão da ONU da sua posse de armas de destruição maciça.[23] O ano de 2002 terminava, então, desta forma: por um lado, o Conselho de Segurança e a União Europeia coincidiam numa posição de firmeza perante o comportamento do Iraque; por outro, Bagdad mantinha a falta de transparência exigida pelo exterior, não dando sinais de acompanhar com vigor a pressão internacional.
Uma semana depois da declaração da União Europeia, os dezanove chefes de Estado e de governo da NATO presentes na Cimeira de Praga, emitiram também eles uma declaração conjunta sobre o Iraque, reiterando o apoio à resolução 1441, manifestando repúdio pelo comportamento pouco colaborante de Bagdad, salientando ser também esta “uma última oportunidade” para o Iraque cumprir com as suas obrigações. Termina o comunicado conjunto reforçando a posição do Conselho de Segurança a respeito das “sérias consequências” que o Iraque pode sofrer em caso de reiteradas práticas violadoras das resoluções.[24]
Um novo ano
A partir de Janeiro de 2003, porém, a narrativa europeia altera-se. Primeiro, através da presidência grega, indignada com a declaração conjunta de oito líderes europeus (Carta dos Oito), acusada de não falar em nome dos 15 e de querer tomar uma decisão final quando essa era apenas uma prerrogativa da ONU, deixando claro que a linha da União Europeia estava expressa nas declarações do Conselho Europeu de 27 de Janeiro.[25] Segundo, através de uma resolução aprovada pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, renhida na sua votação, e que considerava injustificado o recurso à força contra o Iraque na ausência de uma decisão explícita do Conselho de Segurança.[26]
Em Portugal, o Presidente da República Jorge Sampaio era uma das vozes discordantes de uma iniciativa militar sem o aval do Conselho de Segurança. Numa cerimónia junto do corpo diplomático, reunida no Palácio de Mafra, afirmou-se contrário à doutrina da guerra preventiva, por “encerrar graves riscos” e por ser “contrária à tradição do direito internacional que considera o recurso à guerra como um acto de último recurso, admissível apenas em casos de legítima defesa perante um ataque armado, ou quando explicitamente autorizada pelo Conselho de Segurança”. E, referindo-se em concreto ao Iraque, concluiu: “Neste contexto, alguns defenderão que os indícios de que um determinado país dispõe de meios para levar a cabo uma acção deste tipo, ou de que está iminente um acto de agressão, constituem motivo suficiente para permitir, ou até exigir, respostas militares preventivas, mesmo que unilaterais. […] Competirá ao Conselho de Segurança, e só a este, decidir o caminho a tomar”. [27] O Presidente da República assumiu, assim, um papel que contrabalançava a postura do governo, pondo-se à margem de qualquer opção militar precipitada fora do quadro da ONU. Por outras palavras, no quadro da orientação da política externa portuguesa consagrada constitucionalmente, cabia ao governo conduzi-la, embora a presidência da República fosse um actor relevante através do seu estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas.
Em boa verdade, Jorge Sampaio tinha duas razões para dar corpo a este papel. Em primeiro lugar, porque perante uma maioria absoluta de centro-direita, qualquer intenção extremada dos restantes partidos no Parlamento através de moções de censura ao governo – como as quatro que apresentaram a 26 de Março de 2003 – teriam pouco ou nenhum resultado prático. Só a Presidência da República tinha verdadeiramente força no despique político com o governo. Em segundo lugar, e de acordo com Douglas Feith (do inner circle de Donald Rumsfeld), a decisão norte-americana de usar a força militar contra o Iraque estaria tomada, em definitivo, em Dezembro de 2002, quer no que tocava ao derrube do regime, quer a todo o processo de gestão do cenário posterior.[28] Seria pouco credível que os governos aliados não soubessem destas intenções. Dentro deste quadro, era ainda menos crível que quem defendia a via da ONU publicamente – como Sampaio e Barroso –, não o fizesse sabendo que uma decisão de Portugal em estar ao lado dos EUA tivesse que percorrer um caminho político, mesmo sabendo que no final o resultado seria preferencialmente militar.
O regresso ao Parlamento
É sobre este quadro que Durão Barroso regressa ao Parlamento, a 31 de Janeiro de 2003.[29] A segunda vez que o Primeiro-ministro debate o Iraque na Assembleia da República acontece no exacto momento em que oito Estados europeus tomam uma posição pública de apoio expresso a Washington e um dia depois de Barroso ter feito chegar a Bush, por via telefónica, o seu desejo de ver o problema iraquiano orientado segundo uma nova resolução do Conselho de Segurança. Era este o sentido da Carta dos Oito dado por Barroso – e explicado a Jorge Sampaio antes da sua assinatura[30] –, na semana anterior a nova ronda negocial nas Nações Unidas sobre a matéria: “O Conselho de Segurança terá de saber erguer-se à altura da sua responsabilidade histórica”.[31] Na Carta dos Oito, a defesa do elo transatlântico era historicamente interpretada como a garantia da paz europeia, e encarada como fundamental para derrotar as ameaças que, entre outros, o regime iraquiano representava. No fundo, esta missiva de apoio aos EUA não foi mais do que uma forma de pressionar o Conselho de Segurança, pondo o tónico no seu papel futuro em caso de inconsequência após a resolução 1441, para além de revelar aos restantes Estados europeus que a sua segurança estava vinculada a Washington, não dando grande margem para negar um futuro apoio.[32]
Este ponto é, ou passa a ser, extremamente relevante no discurso político do governo português, orientado segundo duas linhas estratégicas. A primeira, na defesa das Nações Unidas e na forma como a resolução 1441 e as tomadas de posição da UE e da NATO vincaram a firmeza dos seus membros perante a ameaça iraquiana, abrindo margem para um apoio a uma “nova decisão das Nações Unidas [que] traduza a vontade da comunidade internacional quanto à solução desta crise”.[33] Ou seja, Portugal mantinha-se ao lado de uma solução não-militar, alertava para as tomadas de posição coincidentes tidas por outros governos e aceitava uma segunda resolução do Conselho de Segurança que expressamente apontasse o dilema de segurança internacional que o Iraque representava. Importa, contudo reflectir sobre isto. A defesa de uma nova resolução – transmitida por Barroso a Bush e defendida no Parlamento – indicava, ela própria, um certo desconforto com o articulado da 1441, ou seja, só era possível defender uma clarificação da solução a tomar pela comunidade internacional através de uma nova resolução, por não se estar plenamente convicto que a resolução em cima da mesa seria suficientemente explícita sobre o uso da força contra Saddam Hussein.
É aqui que entramos na segunda linha estratégica. Ou seja, tornou-se evidente na diplomacia de Barroso que “Portugal participa nas decisões”, sejam elas quais forem.[34] Isto significava que não poderia existir uma posição “neutral, nem equidistante”[35] do país perante a questão iraquiana e que a almofada das posições adoptadas pelas instituições euro-atlânticas era uma das formas encontradas para melhor explicar o processo de decisão português ao Parlamento e à opinião pública: “entre os nossos interesses está a manutenção da relação transatlântica; espero e desejo que os Estados Unidos da América e a Europa não se dividam nesta crise”.[36] Isto não implicava que Barroso não fizesse questão de mencionar alguns diálogos bilaterais mais relevantes que ia mantendo – “com o Presidente George Bush e com os Primeiros-ministros Aznar e Tony Blair”, e de quem recebeu a garantia que “ninguém advoga o recurso à força, a não ser como solução de último recurso”. No entanto, ressalvava um pormenor relevante: “devo reconhecer que há a sensação de que a presente situação não poderá prolongar-se indefinidamente”. [37]
Neste momento, o debate era orientado pelo governo para a salvaguarda das suas alianças, pondo o ónus na oposição (leia-se, Partido Socialista) caso ocorressem rupturas. Nas palavras de Barroso: “espero e desejo que todos os partidos políticos que até à data têm defendido o elo transatlântico – e entre eles incluo o principal partido da oposição – mantenham a sua solidariedade fundamental nesta matéria”.[38]
A resposta de Ferro Rodrigues não se fez esperar. Em primeiro lugar, a Carta dos Oito revelava o contributo de Barroso “para o estilhaçar da União Europeia, exactamente no ponto em que ela é ainda frágil, que é ao nível da política externa comum”.[39] Em segundo, acusava o Primeiro-ministro de “alinhar com qualquer posição que os Estados Unidos venham a tomar, seja ela unilateral ou não, tenha ela paz ou não, haja ou não provas. E isto é insustentável! Estamos contra esta posição de total seguidismo!”. Destas afirmações retira-se um caminho para o maior partido da oposição: opor-se a qualquer decisão tomada por Washington esteja ela baseada ou não em factos concretos sobre a ameaça iraquiana, seja ela coincidente com uma nova tomada de posição do Conselho de Segurança que legitime o uso da força ou a continuação do regime de inspecções. Isto não deixava de limitar a ideia do secretário-geral do PS de que “o Iraque deve ser, efectivamente, desarmado”, sendo uma “acção militar a última das soluções e apenas no quadro das Nações Unidas”.[40]
Barroso recordaria a Ferro Rodrigues a forma como o governo do PS lidou com a intervenção militar da NATO no Kosovo, com participação portuguesa e sem uma expressa autorização do Conselho de Segurança, tendo apenas ido à Assembleia da República já as operações militares dos aliados estavam em marcha. Ou seja, aparentemente, o Primeiro-ministro pretendia justificar o falhanço de uma nova resolução com uma prática já tida pela oposição, sem com isso revelar qualquer ilegitimidade para lidar com uma ameaça à segurança que ambos os partidos consideravam estar personificada no Iraque de Saddam Hussein. O mesmo é dizer que a opção militar dos aliados de Portugal estaria a ser fortemente considerada e que Lisboa teria de tomar uma decisão que, ao mesmo tempo garantisse solidariedade política e diplomática – salvaguardando as suas alianças “mais importantes” (EUA), “mais antigas” (Reino Unido) e “mais próximas” (Espanha) –[41], sem com isso assumir um compromisso que envolvesse as suas Forças Armadas num possível ou previsível conflito militar. Esta trilogia de alianças seria posteriormente referida pelo à data Ministro dos Negócios Estrangeiros, António Martins da Cruz, como a razão mais importante para a tomada de posição de Portugal e para que a Cimeira que determinou esse acto se tivesse realizado precisamente com os líderes políticos desses países.[42]
O entendimento do governo sobre o desenho de uma política externa activa e ambiciosa na projecção de Portugal trazia consigo dois desafios. O primeiro, como resultado de um conjunto de movimentações e tomadas de posição ao nível europeu que não consigam garantir consenso entre os Estados-membros. Deste ponto de vista e perante a crescente intransigência da França e Alemanha no apoio a qualquer intervenção militar, com ou sem uma nova resolução do Conselho de Segurança, qualquer tentativa pública de forjar uma aproximação com Washington e Londres seria sempre entendida como causadora de divisões dentro da União Europeia. Este foi um risco que Portugal correu e que a oposição por diversas vezes aproveitou em debate.
O segundo desafio passava por construir uma base de apoio a uma intervenção militar dos aliados de Portugal que não tivesse uma autorização clara do Conselho de Segurança. Eram evidentes dois objectivos: amarrar a oposição à decisão do governo e diminuir a contestação pública nas ruas e opinião pública. Para tal, o governo traria diversas vezes ao debate político o precedente do anterior governo do Partido Socialista aquando da intervenção militar da NATO no Kosovo, sem uma resolução do Conselho de Segurança que a autorizasse.[43] Ou seja, no debate interno, o governo poderia sempre acusar o PS de, numa situação crítica à segurança internacional, ter estado ao lado de uma decisão dúbia em termos da sua legalidade. O mesmo é dizer que a probabilidade de existir uma decisão dúbia novamente era altíssima e que era preciso acautelar todos os seus riscos políticos.
Entretanto, o Presidente Sampaio tomou a decisão de convocar o Conselho de Estado para analisar a situação, marcado para 6 de Fevereiro. Seria uma forma de colocar o processo de decisão do governo num patamar ainda mais elevado de pressão. Para além disso, reservava para si uma certa liderança na oposição ao governo, uma vez que as vozes dissonantes dentro do PS face à estratégia de Ferro Rodrigues, acusada de colagem ao Bloco de Esquerda (marcadamente anti-americana, anti-NATO e com uma narrativa parlamentar pouco comum para ser associada à história atlantista dos socialistas), eram visíveis e públicas em pesos-pesados como Jaime Gama (então presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros), Luís Amado ou José Lamego. Amado, futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros, seria mesmo o mais contundente, quando após o início da intervenção militar diria que “do ponto de vista estratégico, as opções do governo [em relação ao Iraque] são correctas”.[44]
A convocação do Conselho de Estado foi conhecida no mesmo dia em que era tornada pública a carta que Durão Barroso e mais sete líderes europeus assinaram em apoio dos Estados Unidos. Sampaio tinha duas linhas de argumentação das quais não pretendia abrir mão. A primeira, insistia na defesa de uma segunda resolução para legitimar qualquer decisão em usar a força contra o Iraque. Neste ponto de vista, não divergia na substância do governo, embora fosse mais assertivo no tom que lhe dava. Após mais de quatro horas de reunião, o presidente diria: “é importante que não se saia do Conselho de Segurança da ONU”.[45] A segunda, tinha em conta a necessidade de forjar uma unidade europeia, mesmo que ela divergisse da posição definida por Washington. Neste domínio, eram evidentes as divergências entre Estados europeus – e entre estes e Washington –, o que revelava uma de três posições finais para a política externa portuguesa: ou mantinha a sua aproximação aos EUA – reforçada pela presença aliada dos espanhóis e britânicos –, ou direccionava-se para um campo antagónico a estes três países, ou, ainda, anulava o seu papel de protagonismo e auto-marginalizava a sua posição no quadro euro-atlântico. Barroso, sobre o perfil a adoptar, nunca negou o voluntarismo: “Portugal não será neutral, nem está equidistante”.[46]
A reunião do Conselho de Estado teve um efeito imediato, o de tornar público o julgamento do governo sobre a definição da política externa nacional, ou seja, Barroso não só desvalorizaria a reunião – por ser “um órgão não eleito” e por “não ter quaisquer competências em matéria de política externa”[47]. Isto é, no plano externo, refutava qualquer tipo de equidistância face à ameaça iraquiana; no plano interno, o governo queria reservar para si a tomada de decisão. Para o bem e para o mal.
Mas as divisões não eram apenas patentes no quadro português. Na NATO, por exemplo, bastaram quinze minutos para que os dezanove embaixadores da Aliança constatassem a impossibilidade de ultrapassar o triplo veto da França, Alemanha e Bélgica a qualquer decisão que garantisse a protecção da Turquia em caso de uma eventual intervenção militar contra o Iraque. Ancara responderia com a invocação do mecanismo de consultas perante uma ameaça, embora sem efeitos práticos.
Na União Europeia, as tensões transatlânticas tinham eco simultâneo, pois onze dos quinze Estados-membros eram também membros da NATO. No entanto, se ao nível individual sobressaíam posições mais marcantes, do ponto de vista das declarações conjuntas da UE, em nada se divergiu dos documentos anteriormente tornados públicos. Quer as diligências feitas junto das missões diplomáticas iraquianas em Atenas, Bruxelas e Washington – numa declaração pressionante sobre Bagdad e assinada pelos Estados-membros, países aderentes e associados –, quer as conclusões do Conselho Europeu Extraordinário de 17 de Fevereiro – que responsabilizava o Iraque por “não aproveitar esta última oportunidade” – apontavam nesse sentido.[48]
Talvez a declaração mais relevante desta fase tenha sido a do antigo Primeiro-ministro italiano Giuliano Amato, insuspeito de fretes atlantistas, mas que não se coibiu de criticar a posição de Paris e Berlim: “identifico-me bastante com a posição franco-alemã [sobre o Iraque], mas a maneira como a França e a Alemanha apresentaram as suas razões contribuiu para dividir a Europa”.[49] No dia seguinte, Barroso viajava para Madrid para uma reunião com o Primeiro-ministro Aznar, onde mostraria um consenso ibérico na via da ONU e na pressão ao Iraque. Só assim se poderia “evitar a guerra”, diria.[50]
Um dia depois, Hans Blix e El Baradei apresentavam um relatório ao Conselho de Segurança com elogios aos avanços na cooperação de Bagdad, embora sem uma conclusão definitiva sobre a existência ou não de armas de destruição maciça, “uma possibilidade que não pode ser excluída”.[51] Os mesmos responsáveis pelas inspecções, iriam mais longe nas suas apreciações sobre Bagdad e, em apenas uma semana, afirmariam que o regime não tinha “qualquer credibilidade” e que qualquer decisão a tomar pelos principais líderes teria que ser política, pois “se não há provas e se nada se encontra, não [se] pode garantir ou recomendar ao Conselho de Segurança que haja confiança”.[52] Porém, as divisões euro-atlânticas mantinham-se, sem qualquer indício de alterações a curto prazo.
No espaço de um mês, duas reuniões ao mais alto nível tiveram lugar nos EUA. A primeira, a 31 de Janeiro, entre Bush e Blair. De acordo com o memorando da reunião elaborado por David Manning (conselheiro de Blair), entretanto tornado público, Bush fez ver a Blair que não era só Chirac quem tinha o exclusivo da intransigência e comunicou-lhe que, com ou sem nova resolução da ONU, com ou sem provas da existência de armas de destruição maciça, os EUA iriam invadir o Iraque. Blair mostrou a sua total solidariedade. Bush era ainda mais preciso nas suas ambições: “a data de início da campanha militar está pensada para 10 de Março. É aí que os bombardeamentos devem começar”.[53] A segunda reunião foi entre Bush e Aznar, em Crawford, no qual o Presidente americano comunicou ao Primeiro-ministro espanhol que dentro de duas semanas as tropas norte-americanas estariam prontas e que no fim de Março estariam em Bagdad. Bush confessaria ainda que a sua “paciência estava esgotada, não penso ir mais além de meados de Março”. Neste encontro, cujas actas foram entretanto conhecidas e publicadas, Aznar fazia ver a perspectiva de Blair de chegar com a pressão diplomática até dia 14 de Março, mas Bush teimou no dia 10 e confessou não se preocupar em ser o “polícia mau” enquanto Blair fosse “o polícia bom”. A páginas tantas, uma frase solta-se do guião e revela uma curiosa interpretação das desavenças euro-americanas, pois Bush era da opinião que “quanto mais os europeus o atacavam, mais forte era nos EUA”.[54]
Em vésperas do Conselho Europeu, Durão Barroso e António Martins da Cruz recebiam os partidos em audiência. A posição pública do governo transmitida foi, em primeiro lugar, “procurar evitar clivagens entre os parceiros europeus”; em segundo, sublinhar que Portugal “não podia hesitar entre um regime de ditadura e os Estados Unidos”. Ferro Rodrigues, em nome do PS, instou por seu lado o governo a “abandonar a posição de seguidismo em relação à administração Bush”. Era nesta altura evidente que tínhamos entrado numa fase do debate onde a hipótese militar era cada vez mais uma opção viável e sobre a qual o governo e a oposição esgrimiam posições diametralmente opostas em relação a essa via. O debate, em boa verdade, estava bastante claro para todos.
No já referido Conselho Europeu extraordinário, foram duas as grandes questões em cima da mesa. Por um lado, um acréscimo de pressão sobre o Iraque partilhado por todos os Estados-membros; por outro, a tentativa de alguns de construir um denominador comum entre a Europa e os EUA.
No quadro institucional português, Jorge Sampaio era mais uma vez um actor activo nesta fase. Em longa entrevista ao Diário Económico, na véspera do debate mensal no Parlamento, Sampaio não escondeu as diferentes sensibilidades manifestadas entre Belém e São Bento em relação ao Iraque. Para ele, “Portugal tinha um papel importante na cena internacional: por um lado, porque é uma componente de relevo da União Europeia e, por outro, por ter um papel no contexto da aliança atlântica”. Era precisamente esta gestão de compromissos, nas palavras do presidente da República, que definia essas duas sensibilidades: o governo, mais sensível às posições norte-americanas e a estados europeus atlantistas; a presidência, mais próxima da narrativa europeia continental, nomeadamente a francesa. Aliás, nesta mesma entrevista, Sampaio alongou-se em elogios ao presidente Jacques Chirac. À pergunta sobre se era ainda possível evitar a guerra, Jorge Sampaio revelava a sua descrença: “acho que a margem é muito pequena”.[55]
No meio da tensão transatlântica, Barroso regressa ao Parlamento português, a 27 de Fevereiro, para novo debate mensal, embora desta vez não dedicado em exclusivo ao Iraque. Foi uma oportunidade aproveitada para reforçar o desejo de se alcançar uma nova resolução no Conselho de Segurança que legitimasse uma intervenção militar e, desta forma, coincidir politicamente com as posições assumidas pela Presidência da República. Além disso, assumiu que dado a não presença de Portugal no Conselho de Segurança, a sua posição de referência era a posição aprovada por unanimidade pela União Europeia no último Conselho Europeu: “a posição da UE é a posição do governo português, a posição do governo português é a posição da UE”.[56]
Jorge Sampaio seria, mais uma vez caustico na definição das alianças nacionais e, no discurso de abertura de um congresso sobre Portugal e o futuro da Europa, diria que “nenhum laço bilateral, por mais antigo e por mais forte que seja, poderá substituir a parceria comunitária”. Estava definitivamente marcada a sua posição. Mas numa leitura mais abrangente das relações internacionais, mostrou-se confortável com tomadas de posição esclarecedoras do papel da Europa – como as do presidente Chirac, quando este assumiu vetar qualquer novo ultimato ao Iraque em quaisquer circunstâncias[57] –, ao ver a definição de uma política externa europeia, sem divisões, como um instrumento de “afirmação internacional como potência mundial [o que] constituiria o melhor antídoto para alguns efeitos negativos da globalização e um elemento equilibrador de um mundo unipolar”.[58] Em jeito de resposta, Durão Barroso acabaria por enunciar explicitamente a sua posição em caso de conflito militar, numa conferência de imprensa conjunta com o seu homólogo luxemburguês, referindo apoiar os EUA nessa situação e caso não haja uma resolução da ONU.[59] Eram evidentes os lados preferenciais entre Belém e São Bento nesta recta final.
Coube ao Ministro dos Negócios Estrangeiros defender a posição do governo no debate Parlamentar dedicado ao Iraque, o último antes da realização da Cimeira das Lajes. A 12 de Março de 2003, António Martins da Cruz salientou a falta de cumprimento do Iraque às resoluções da ONU, mostrando-se confortável com as posições do Conselho de Segurança e da União Europeia. Contudo, estava sensível a outras soluções, ao afirmar que “o Conselho de Segurança tem de salvaguardar a sua credibilidade e assumir as suas responsabilidades – não compete aos inspectores tomarem decisões políticas mas, sim, aos membros daquele conselho”.[60] Mais, se “Portugal fosse membro, votaria a favor de uma segunda resolução, que seria acima de tudo um meio adicional de exercer novas pressões sobre o Iraque”.[61] Este era, pois, o caminho preferencial do ponto de vista político.
E se se colocassem outras hipóteses, que posição defenderia Portugal? O cenário era ele próprio colocado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, isto é, se “os Estados Unidos agirem unilateralmente, ou numa coligação, sem uma resolução” –, embora negasse qualquer envolvimento militar de Lisboa, nem declarando guerra, nem invadindo o território. O debate manter-se-ia marcadamente ideológico, com Martins da Cruz a exaltar as responsabilidades da condição de aliado num quadro entre democracias e ditaduras: “Portugal não pode ficar neutro nem equidistante num confronto entre o nosso principal aliado e o regime de Bagdad. […] Neutralidade significaria cumplicidade”.[62]
Para o Partido Socialista, a questão deveria manter-se no carril do Conselho de Segurança, opondo-se a qualquer decisão unilateral de Portugal no apoio a uma intervenção militar à revelia de uma nova resolução. A crítica era, no entanto, mais abrangente: “a verdade é que o governo português alinha incondicionalmente com os falcões da Administração Bush. É lamentável!”.[63]
O protagonismo nas Lajes
Enquanto eixo estrutural da política externa portuguesa nos últimos cinquenta anos, a relação com os EUA foi colocada pelo governo no patamar mais alto dos interesses nacionais a defender, ao longo dos meses em que o Iraque dominou o debate político. António Martins da Cruz explicaria o raciocínio do governo, exactamente um mês depois de Durão Barroso ter sido recebido pelo presidente Bush na Casa Branca: “a defesa e segurança de Portugal dependem da NATO, ou seja, dos EUA e de mais ninguém”.[64] De acordo com o próprio Primeiro-ministro, não foi abordado nesse encontro a utilização das Lajes por parte dos EUA, pois a solução política ainda não estava esgotava.[65]
Neste quadro, a base da Lajes acabaria por, mais cedo ou mais tarde, fazer parte de todo o debate, quer através do articulado patente no Acordo de Defesa entre Portugal e os EUA, assinado em 1995, quer pelo protagonismo político que viria a assumir na recta final anterior à intervenção no Iraque. Seria em Maio de 2002, que Martins da Cruz e o Secretário de Estado Colin Powell iriam reiterar ao mais alto nível diplomático as premissas do Acordo de Defesa bilateral, pelo qual acções militares decididas pelo Conselho de Segurança da ONU ou pelo Conselho do Atlântico Norte da NATO apenas requeriam uma participação informativa dos EUA a Portugal a respeito da utilização da base; no quadro de uma decisão militar unilateral de Washington, os norte-americanos teriam que pedir autorização a Portugal para utilizar as Lajes.
Após a aprovação da resolução 1441, em 8 de Novembro de 2002, Portugal pôs, automaticamente, a base militar açoriana à disposição dos seus aliados norte-americanos, aliás anunciada na Cimeira da NATO em Praga, por Barroso, tendo aproveitado a ocasião para, através do Ministro da Defesa Paulo Portas, assinar alguns protocolos com vista à modernização do dispositivo português de defesa e manifestado interesse estratégico em manter o comando da NATO em Oeiras, numa fase de redefinição da estrutura global levada a cabo pela Aliança Atlântica.[66] A 18 do mesmo mês, Washington invocaria formalmente junto do governo português a possibilidade de utilização da base no quadro do referido acordo. [67]
Mas não foi só a Lisboa que foram requeridos os préstimos militares. Washington solicitou a Madrid, a partir de Setembro de 2002, a utilização do seu espaço aéreo bem como das bases de Rota e Morón, com vista a operações futuras no Iraque, pedido aceite pelo governo espanhol e admitido pelo Ministro da Defesa Federico Trillo, em Fevereiro de 2003.[68]
A primeira vez que a questão das Lajes se colocou no Parlamento foi a 29 de Janeiro de 2003, introduzida pelo Partido Comunista. Dois dias depois, em debate mensal com o governo, o mesmo PCP voltaria ao tema, colocado nos termos certos: que posição adoptaria Portugal em caso de ataque unilateral dos EUA ao Iraque, autorizaria o uso da base, ou não? Barroso respondeu que os EUA já tinham pedido a sua utilização, “numa comunicação que dirigiu ao governo português, em que disse […] não [estar] ainda tomada uma decisão de ataque contra o Iraque e que o governo português já autorizou essa utilização”. E porquê? “Porque entende que é isso que deve fazer em relação ao nosso aliado mais importante e no quadro do acordo de cooperação e amizade entre Portugal e os EUA”.[69] Por outras palavras, pese embora a narrativa política que pautou as intervenções do governo português, no sentido de encontrar uma solução no quadro da ONU, o facto de ter autorizado a utilização das Lajes pelos EUA – quando esta só se torna necessária em caso de ataque militar fora da autorização do Conselho de Segurança – indica que já neste final de Janeiro era mais que crível em São Bento que o uso da força iria acontecer em breve. Com ou sem autorização da ONU, mas certamente sob a liderança norte-americana. Para compor este raciocínio, o governo já tinha dado ordens para encerrar a embaixada portuguesa em Bagdad.
Embora as Lajes assumissem um papel primordial nas relações históricas entre os EUA e Portugal e, por via disso, para toda a economia açoriana – como era dito pelo presidente do governo regional, o socialista Carlos César, “é interesse dos Açores manter uma relação de proximidade com os EUA”[70] –, elas revelaram um protagonismo político que acabou por marcar todo o dossier Iraque.
A Guerra era uma questão de dias. Neste início de Março, a maior parte das forças destacadas para a futura Operation Iraqi Freedom estavam já estacionadas no Kuwait: 170 mil tropas, dezenas de navios de guerra eram postos em alerta, centenas de aviões de combate estavam preparados para agir caso a ordem surgisse da Casa Branca. Os únicos detalhes eram meramente políticos, não militares.[71] Nas tensões permanentes entre o Pentágono e o Departamento de Estado, um homem assumiu o controlo da estratégia global da administração. Donald Rumsfeld, secretário da defesa, tinha a decisão tomada, sem grande apego aos seus aliados mais próximos. A 11 de Março, diria até que não lhe causava grande preocupação que o Parlamento britânico rejeitasse a decisão de Tony Blair – enfraquecendo-o internamente o que, em última análise, o podia fazer cair –, pois os EUA poderiam tratar do Iraque sozinhos e com apoio do Congresso.[72] Mais, Rumsfeld diria mesmo por telefone ao seu homólogo britânico Geoff Hoon que a recusa do Chile e México em apoiar a intenção americana de forjar uma segunda resolução que fosse um deadline expressivo a Saddam, era o fim da diplomacia pública da Administração face ao Iraque. Este ponto é relevante: foi sob pressão britânica que Bush contactou os presidentes chileno e mexicano e deu ainda alguma margem à viabilização de uma nova resolução. Seria também a intransigência demonstrada por Paris, a 10 de Março, manifestando-se contra um texto novo “em qualquer circunstância”, que encostou os esforços diplomáticos à parede e levaram Rumsfeld e Bush a fecharem definitivamente a portagem da via política. [73]
Este mesmo protagonismo do departamento de defesa seria marcado por uma reunião do National Security Council onde que um dos mais altos funcionários do Pentágono, Douglas Feith, fez saber aos restantes membros os planos posteriores à invasão, os quais passavam por um desmantelamento dos serviços de informação iraquianos, da elite dirigente do partido Baas, e da própria guarda nacional republicana. [74] Os EUA não tinham quaisquer dúvidas sobre o caminho a tomar, precisamente no dia em que António Martins da Cruz debatia com as oposições no Parlamento.
Dois dias depois, a 14 de Março, os líderes mais relevantes nesta matéria confrontaram-se com a possibilidade de realizar uma cimeira que pusesse o tónico numa solução política final dando ao mesmo tempo um ultimato a Saddam. A iniciativa partiu de Londres e foi comunicada a Washington que lhe concedeu a utilidade de rematar politicamente um assunto sobre o qual já tinha tomado uma decisão. A primeira hipótese em cima da mesa foi a sua realização em Washington, que agradava a Bush, mas à qual Downing Street se opôs imediatamente por estar permanentemente sob fogo da opinião pública, que a acusava de ser um poodle de Bush. A segunda solução foi Londres. Sobre isto, Blair deu voltas na cadeira com receios de novas manifestações anti-guerra prejudiciais à sua posição interna.[75] Uma outra hipótese, seriam os Barbados, embora rapidamente descartada.[76] Um outro local, sugerido pelo chefe de gabinete de Bush, Andy Card, foi as Bermudas.[77] Por um lado, eram demasiado perto dos EUA e muito longe da Grã-Bretanha, o que também não era muito bem aceite. Por outro, alguns dos protagonistas, como o Primeiro-ministro Aznar, não viam com bom olhos que uma cimeira desta importância ficasse associada a uma peça de roupa.[78] Foi, então, que o Primeiro-ministro espanhol sugeriu a Blair que o encontro se realizasse nos Açores e que ele próprio se encarregaria de contactar o Primeiro-ministro português, propondo-lhe a sua realização e participação. Barroso não só acedeu ao pedido como se mostrou motivado a integrar o quarteto. Esta cimeira era não só um requisito importante para Londres e Madrid, uma vez que se iam comprometer com forças armadas na fase inicial, mas também lhes permitia enfrentar internamente as vozes mais discordantes, dizendo que tudo tentaram até ao final. Para Aznar, esta era mesmo uma forma de restituir um protagonismo à Espanha no plano internacional que desejava, reforçando esse desígnio com a oportunidade de poder estar ao lado das maiores democracias do mundo contra as grandes tiranias da actualidade.[79]
Ainda nesse dia, o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer dava conta desta posição comum entre Blair, Aznar e Barroso para a realização do encontro nas Lajes – agraciada com uma distinção pelo Pentágono com a categoria de “excelente”, em 2002 –, geograficamente equidistante dos EUA e da Grã-Bretanha para merecer a concordância de todos.[80] Ainda nesse dia, um dos conselheiros do presidente, Stephen Hadley entregava um memorando a Michael Gerson, speechwriter de Bush, com os pontos-chave a levantar no discurso das Lajes, um resultado de diversas reuniões ao mais alto nível e com um cunho final de Rumsfeld que insistia num ultimato público dado a Saddam que não ultrapassasse as 48 horas. Bush, no entanto, reforçaria na declaração das Lajes um papel primordial para a ONU no pós-guerra, algo que não se veio de facto a verificar. Ou seja, a ideia de conceder um limite ao processo político sabendo da dificuldade que o regime iraquiano tinha em colaborar com a ONU, trazia consigo uma declaração de guerra por meios políticos.
Quando a cimeira das Lajes ficou arquitectada, Chirac entrava em contacto com Blair para lhe dar conta da sua disponibilidade em conceder um prazo limite de 30 dias ao Iraque. Bush diria prontamente a Blair que tudo não passava de uma táctica para atrasar a decisão final e que esquecesse Paris. Aqui entravámos no jogo político demonstrativo das capacidades de decisão das principais potências. Por um lado, os EUA, líderes de todo o processo e com força suficiente para intervir unilateralmente. Por outro, a França, assumindo um papel antagónico no sistema internacional e na projecção de poder no quadro europeu. Por fim, os aliados de ambos, que acabaram por ter que assumir um posicionamento político cauteloso, sem nunca abdicar da sua ligação a Washington. E seria esta que acabaria por pesar mais, no caso português.
Na véspera da Cimeira, mantinham-se algumas preocupações entre os quatro protagonistas. Do lado britânico, sobretudo, existia um nervosismo latente com a possibilidade de a conferência de imprensa se realizar num pano de fundo militar, que inviabilizasse a mensagem política que se queria passar. Em resposta a isto, a organização portuguesa do evento liderada pelo diplomata Nuno Brito, retiraria todas as fotografias de cariz militar que estivessem penduradas nas paredes.[81] Durão Barroso, que estava manifestamente orgulhoso da “credibilidade de Portugal” como anfitrião e participante activo da manutenção da dimensão atlântica da Europa, opôs-se a uma linguagem na declaração final que não privilegiasse a dimensão política e, nesse, aspecto, Lisboa, Madrid e Londres temperaram as ambições iniciais de Washington quanto ao documento final da cimeira. Ferro Rodrigues, em coerência, dava conta da gravidade do anúncio de uma declaração de guerra à qual Portugal estivesse desde a primeira hora associado, embora não gostasse de assistir a uma cimeira nas Lajes sem a presença do Primeiro-ministro.[82] Nesta altura, Sampaio convocava novamente o Conselho de Estado para dia 24 e sublinhava o compromisso de Barroso num posicionamento de Portugal durante a cimeira, que privilegiasse o tom político e não o militar.[83]
A posição de Portugal acabou por se revelar não tão forte como pareceu. Quando Barroso reconhece na véspera que a cimeira estava mais bem definida como “três mais um”,[84] dava conta de um certo desconforto face a uma agenda dominada pela Administração Bush. Ser anfitrião e participante de um encontro marcante da história recente acabou por não lhe garantir grandes lucros, por exemplo, na literatura mais relevante dedicada ao conflito e às movimentações diplomáticas que o antecederam. São aliás, raros, os livros que dão destaque à Cimeira das Lajes publicados nos últimos anos, talvez por serem na sua maioria visões de origem norte-americana e, por isso, com pouca atenção dada ao momento político açoriano.[85] Além disso, a posição “três mais um” mostrava em colocar a posição de Portugal ao mesmo nível da que seria tomada pelos restantes três. E não o foi, desde logo, porque a participação na ofensiva militar estava posta de parte, ao contrário de Madrid e Londres; depois, porque a própria figura de país organizador da cimeira obrigava-o a um papel promotor de consensos no texto da declaração final, conseguido aliás. Porém, tal não invalida que a decisão mais complexa da política externa portuguesa das últimas décadas tenha, até à última hora, sido equacionada em todos os seus termos. Mesmo que publicamente a sua clareza e convicção possam ter sido seguidas.
Conclusões
O caminho desenhado pelo governo português em relação ao Iraque teve sempre em conta a posição norte-americana. Entre Setembro e Dezembro de 2002, altura em que a administração Bush tomava definitivamente a opção militar como certa no curto-prazo, Durão Barroso traçava a argumentação do governo tendo em conta esse cenário. Daqui não resulta que Bush a tenha transmitido a Barroso. Resulta sim, que a percepção do governo português indicava que os EUA se inclinavam fortemente para uma solução militar a breve trecho. Perante isto, Portugal defendeu dois caminhos.
Por um lado, dando espaço ao Conselho de Segurança para assumir um papel de liderança no processo e revelar a sua importância na gestão de crises internacionais de nível elevado, quer através do resultado da resolução 1441, quer através de uma autorização ao uso da força emanado de uma posterior resolução. Daqui resulta, precisamente, uma via política para a resolução do problema promovida por Portugal. Dentro deste nível, é de salientar a participação portuguesa nas declarações tidas pela NATO e pela União Europeia, ambas validando o caminho da ONU.
Por outro lado, sentindo como válida a opção militar norte-americana, Portugal sabia que teria que tomar uma decisão de apoio, neutralidade ou oposição à mesma. E aqui, prevaleceram antes de mais os interesses portugueses: a valorização da segurança nacional através do vínculo a Washington, a prevalência da relação bilateral com epicentro nos Açores, a manutenção do comando da NATO em Oeiras, a captação de investimentos militares norte-americanos à modernização da defesa nacional, o posicionamento português no processo político e económico iraquiano a médio e longo prazos e, em último caso, um apoio à candidatura de António Vitorino a secretário-geral da NATO. [86]
É de salientar, ainda, que o debate político português revelou, de um lado, uma concertação de posições entre a maioria que apoiava o governo (PSD/CDS), com Barroso e Martins da Cruz a assumirem a condução do dossier; de um outro lado, a oposição marcadamente ideológica do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista a toda e qualquer solução contra o Iraque, demarcando-se o Partido Socialista delas, numa primeira fase – por razões históricas e políticas –, embora tenha acabado por percorrer um caminho que aqui e ali se confundiu com as bancadas à sua esquerda, o que motivou alguns dos seus mais destacados membros a demarcações públicas. Por fim, o papel relevante do Presidente Sampaio, quer como defensor da via da ONU, quer como anuente da cedência das Lajes à Administração americana, quer como factor de coesão entre as diversas sensibilidades socialistas. Em todo o processo, refira-se, a existência de armas de destruição maciça acabou por não ser o tema mais debatido no espaço político, quer na argumentação do governo, da Presidência da República ou mesmo do Partido Socialista, ao contrário de outros aliados de Portugal.
Por fim, a Cimeira das Lajes. Proposta por Aznar e posta em marcha imediatamente por Barroso, mostrou duas realidades pouco relevadas pela esmagadora análise internacional posterior. Por um lado, perante um quadro internacional feito de tensões permanentes entre a relevância, eficácia e rigidez do Conselho de Segurança e, por outro, face à forçada democratização norte-americana, as Lajes acabaram por salvaguardar as Nações Unidas ao não obrigar o Conselho de Segurança a ratificar um segunda resolução. Depois, mostraram uma política externa portuguesa capaz de seguir um trajecto de protagonismo tal que lhe confere, em contrapartida, a valorização de um conjunto de instrumentos negociais. Podemos questionar, certamente, se alguns fins justificarão alguns meios. Não podemos, contudo, ignorar, que o objectivo de elevar a diplomacia portuguesa a um patamar mais elevado acabou por ser alcançado com o processo de decisão desenhado pelo governo português.
Notas:
[1] Ver, Bernardo Pires de Lima, Blair, a Moral e o Poder, Lisboa: Guerra & Paz, 2008, Cap. 5.
[2] Jack Straw, “Re-Ordering the World”, Speech to the Foreign Policy Centre, London, 25 March 2002.
[3] Cit. em John Kampfner, Blair’s Wars, London: Free Press, 2003, p. 195.
[4] Declaração da Presidência sobre o Iraque, em nome da União Europeia, Bruxelas, 20 de Maio de 2002, 8884/02 (Presse 143) P 65/02.
[5] Conclusões da 2447ª Sessão do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, Bruxelas, 22 de Julho de 2002, 10945/02 (Presse 210).
[6] Cf. Peter Stothard, Thirty Days: An Inside Account of Tony Blair at War, New York: Harper Collins, 2003, p. 64.
[7] Cf. “The Secret Downing Street Memo”, Times online, 1 May 2005.
[8] José Manuel Durão Barroso, “Debate Mensal com o Parlamento subordinada ao tema: A situação política internacional, designadamente a questão do Iraque”, Diário da Assembleia da República, I Série, Nº 38, IX Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (2002-2003), Lisboa, 19 de Setembro de 2002.
[9] Idem, p. 4.
[10] Idem, p. 6.
[11] Idem, p. 5.
[12] Ibidem.
[13] Idem. p. 7.
[14] Idem. p. 23.
[15] Idem, p. 7.
[16] Ibidem.
[17] Reunião Plenária, “Debate sobre o conceito estratégico de defesa nacional”, Diário da Assembleia da República, I Série, N. 57, IX Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (2002-2003), 20 de Novembro de 2002, pp. 31-36.
[18] Citado em “Durão Barroso justifica apoio aos EUA com manutenção da NATO em Oeiras”, Público, 27 de Março de 2003, p. 22; Ver Reunião Plenária, “Apresentação das moções de censura ao Governo”, Diário da Assembleia da República, I Série, N. 104, IX Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (2002-2003), 26 de Março de 2003, p. 104.
[19] Citado em “Jorge Sampaio aconselha aprofundamento da PESC”, Público, 15 de Fevereiro de 2002, p. 13.
[20] Cf. Resolution 1441, United Nations Security Council, 8 de Novembro de 2002. Disponível em: www.un.org.
[21] Conclusões da 2464ª Sessão do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, Bruxelas, 19 de Novembro de 2002, 14184/02 (Presse 351), p. 6.
[22] Conclusões da Presidência, Conselho Europeu de Copenhaga, Bruxelas, 12 e 13 de Dezembro de 2002.
[23] Cf. Hans Blix, Briefing the Security Council: Inspections in Iraq and a Preliminary Assessment of Iraq’s Weapons Declaration, 19 Dezembro 2002. Disponível em: http://www.un.org/Depts/unmovic/new/pages/security_council_briefings.asp#2
[24] NATO Press Release (2002) 133, North Atlantic Council, Prague Summit Statement on Iraq, Prague, 21 Novembro 2002. Disponível em http://www.nato.int/docu/pr/2002/p02-133e.htm
[25] Cf. Conclusões da 2482ª Sessão do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, Bruxelas, 27 de Janeiro de 2003, 5396/03 (Presse 8), p. 14; George Papandreou, “Statement on Iraq and the joint declaration of eight European leaders”, Ankara, 31 January 2003.
[26] Council of Europe, Parliamentary Assembly, Resolution on Iraq, Resolution 1316, 30 January 2003. Disponível em http://assembly.coe.int/Main.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta03/ERES1316.htm
[27] Citado em “Jorge Sampaio manifesta-se contra guerra preventiva”, Público, 8 de Janeiro de 2003, p. 7.
[28] Cf. Douglas Feith, War and Decision: Inside the Pentagon at the Dawn of the War on Terrorism, New York: Harper Collins, 2008, p. 361.
[29] José Manuel Durão Barroso, “Debate Mensal com o Parlamento subordinada ao tema “A situação política internacional suscitada pela questão do Iraque e a recente tomada de posição pública de Portugal e de mais sete países da Europa”, Diário da Assembleia da República, I Série, Nº 82, IX Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (2002-2003), Lisboa, 31 de Janeiro de 2003.
[30] Cf. “Jorge Sampaio queria uma Europa unida”, Público, 31 de Janeiro de 2003, p. 2; “Durão ouviu Sampaio sobre Iraque”, Independente, 31 de Janeiro de 2003, p. 5; “Entrevista a Jorge Sampaio: Aplaudo a posição do presidente Chirac na questão do Iraque”, Diário Económico, 26 de Fevereiro de 2003, p. 3.
[31] Debate Mensal com o Parlamento, 31 de Janeiro de 2003, p. 4.
[32] A Carta dos Oito, intitulada “Europe and America must stand United”, de 30 de Janeiro de 2003, foi inicialmente publicada no Wall Street Journal e teve como subscritores a Grã-Bretanha, Espanha, Itália, Portugal, Dinamarca, Polónia, Hungria e República Checa. Há relatos que dizem ser o texto tão consensual que até Paris e Berlim a poderiam ter assinado, não fosse o timing da mesma. Cf. Philip H. Gordon and Jeremy Shapiro, Allies at War, p. 129.
[33] Idem, p. 5.
[34] Idem, p. 7.
[35] Idem, p. 16.
[36] Idem, p. 5.
[37] Idem, p. 4.
[38] Idem, p. 5.
[39] Idem, p. 6.
[40] Ibidem.
[41] Idem, p. 11.
[42] “Entrevista de vida de António Martins da Cruz”, Sábado, 7 Janeiro 2010, pp. 52-57
[43] Debate Mensal com o Parlamento, 31 de Janeiro de 2003, p. 16.
[44] Citado em “Entrevista a Luís Amado”, O Independente, 11 de Abril de 2003, p. 45.
[45] Citado em “Guerra ao Iraque: Portugal ainda fala a duas vozes”, Público, 7 de Fevereiro de 2003, p. 10.
[46] Debate Mensal com o Parlamento, 31 de Janeiro de 2003, p. 16.
[47] Citado em “Guerra ao Iraque: Portugal ainda fala a duas vozes”, Público, 7 de Fevereiro de 2003, p. 10.
[48] Cf. Diligência da Presidência, em nome da EU, respeitante ao Iraque, Bruxelas, 4 de Fevereiro de 2003 (5963/03 (Presse 28); Conclusões do Conselho Europeu Extraordinário, Bruxelas, 17 de Fevereiro de 2003 (6466/03).
[49] Citado em “NATO falha de novo um consenso para a defesa da Turquia”, Público, 12 de Fevereiro de 2003, p. 2.
[50] Citado em “Governos português e espanhol falam a uma só voz em Madrid”, Diário de Notícias, 13 de Fevereiro de 2003, p. 5.
[51] Citado em “Relatório sobre o Iraque aprofunda divisões no Conselho de Segurança”, Público, 15 de Fevereiro de 2003, p. 2.
[52] Citado em “Sem credibilidade”, Diário de Notícias, 24 de Fevereiro de 2003, p. 3.
[53] Citado em “Bush-Blair Iraq memo revealed”, BBC News, 27 March 2006; “Blair made secret US Iraq Pact”, BBC News, 3 February 2006. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/politics/4675724.stm
[54] Citado em “Llegó el momento de deshacerse de Sadam”, El País, 26 de Setembro de 2007. Este artigo relata na íntegra a acta da reunião entre George W. Bush e José Maria Aznar, em Crawford, 22 de Fevereiro de 2003. Ver, ainda, Mark Danner, “The moment has come to get rid of Saddam”, The New York Review of Books, Vol. 54, N. 17, 8 November 2007.
[55] Jorge Sampaio, “Aplaudo a posição do presidente Chirac na questão do Iraque”, Diário Económico, 26 de Fevereiro de 2003, p. 3.
[56] José Manuel Durão Barroso, “Debate Mensal com o Parlamento”, Diário da Assembleia da República, 1ª Série, N. 92, IX Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (2002-2003), Lisboa, 27 de Fevereiro de 2003, p. 26.
[57] Jacques Chirac diria, em entrevista à televisão francesa TF1, que o único objectivo para o braço de ferro com os EUA era “porque queria viver num mundo multipolar […] e que em nenhumas circunstâncias aprovaria um novo ultimato ao Iraque”. Cf. Philip H. Gordon and Jeremy Shapiro, Allies at War: America, Europe, and the Crisis over Iraq, New York: McGraw-Hill, 2004, p. 152, 179.
[58] Citado em “Nenhum laço bilateral é mais importante do que a pertença europeia”, Público, 8 de Março de 2003, p. 13.
[59] Citado em “Durão explicou a Sampaio declaração de apoio aos EUA”, Diário Económico, 11 de Março de 2003, p. 23.
[60] António Martins da Cruz, “Reunião Plenária”, Diário da Assembleia da República, I Série, N. 97, IX Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (2002-2003), Lisboa, 12 de Março de 2003, p. 12.
[61] Ibidem.
[62] Idem, p. 13.
[63] Eduardo Ferro Rodrigues, Idem, p. 8.
[64] António Martins da Cruz, “Portugal não quer nenhuma acção militar contra o Iraque”, Euronotícias, 11 de Outubro de 2002, p. 3.
[65] Cf. “Durão não exclui colaborar em guerra com Iraque”, Público, 11 de Setembro de 2002, p. 65.
[66] Cf. “Lisboa abre Lajes aos EUA”, Diário Insular, 26 de Novembro de 2002, p. 6.
[67] Cf. “Lajes já mexe”, Visão, 23 de Janeiro de 2003, p. 42.
[68] Cf. C. Navarras Zubeldia, “The Spanish Defense Policy in Regression”, in K. Haltiner, P. Klein, and F. Kernic (eds.), The European Armed Forces in Transition: A Comparative Analysis, New York: Peter Lang, 2005, p. 108.
[69] Debate com o Parlamento, 31 de Janeiro de 2003, p. 16-17.
[70] Citado em “O interesse dos Açores é de manter relação de proximidade com os EUA”, Diário dos Açores, 30 de Março de 2003, p. 10.
[71] Cf. John Keegan, The Iraq War, New York: Random House, 2005, p. 117.
[72] Cf. Elizabeth Pond, Friendly Fire: The Near-Death of the Transatlantic Alliance, Washington D.C: Brookings Institution Press, 2004, p. 74.
[73] Cf. Anthony Seldon, Blair, London: Free Press, 2004, pp. 592-593.
[74] Cf. Bob Woodward, Plan of Attack, New York: Simon & Schuster, 2004, pp. 342-343.
[75] Cf. Con Coughlin, American Ally: Tony Blair and the War on Terror, London: Politico’s, 2006,p. 679
[76] Cf. Peter Stothard, Thirty Days: An Inside Account of Tony Blair at War, New York: Harper Collins, 2003, p. 45.
[77] Cf. Bob Woodward, Idem, p. 357.
[78] Citado em “Quando eles não se calam”, Sábado, 28 de Agosto de 2008, p. 53.
[79] Cf. Jose Maria Aznar, Ocho Años de Gobierno: Una Visión Personal de España, 3ª Ed. Barcelona: Planeta, 2004, p. 173; “Aznar asegura que no quiere ver a España alienada junto a los países que no sirven”, El Pais, 3 de Março de 2003.
[80] Cf. Bob Woodward, Ibidem; Peter Stothard, Idem, p. 45.
[81] Peter Stothard, Idem, pp. 56-57.
[82] Citado em “Ferro apreensivo com presença de Durão”, Público, 15 de Março de 2003, p. 16.
[83] Cf. “Sampaio pela paz com Durão”, Expresso, 15 de Março de 2003.
[84] Citado em “Cimeira 3+1 nos Açores”, Expresso, 15 de Março de 2003, p. 1.
[85] Ver, por exemplo, Thomas E. Risks, Fiasco: The American Military Adventure in Iraq, London: Penguin Press, 2006; Robert Draper, Dead Certain: The Presidency of George W. Bush, New York: Simon & Schuster, 2007; Michael Gordon and Bernard E. Trainor, Cobra II: The Inside Story of the Invasion and Occupation of Iraq, New York: Vintage Books, 2007; Ali A. Allawi, The Occupation of Iraq: Winning the War, Losing the Peace, New Haven and London: Yale University Press, 2008; Scott McClellan, What Happened: Inside the Bush White House and Washington’s Culture of Deception, New York: Public Affairs, 2009; George Packer, The Assassin’s Gate: America in Iraq, New York: Farrar, Straus and Giroux, 2006.
[86] Sobre a candidatura de António Vitorino ver, por exemplo, “Durão sugere a Bush participação na administração do Iraque”, Diário Económico, 6 de Junho de 2003, p. 28.