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Evocação, Mário Soares (1924-2017)
David Castaño
IPRI-NOVA, 09 | Janeiro | 2017




Mário Soares 

Em Portugal há um enraizado costume que transforma os mortos em heróis imortais. Nas horas e nos dias que se sucedem ao desaparecimento de qualquer personalidade que se tenha destacado nas artes, na ciência, no mundo empresarial ou na política, os meios de comunicação social são inundados por evocações, memórias e testemunhos que sublinham as extraordinárias qualidades do finado. Raramente se lhes apontam as imperfeições e os defeitos. As sombras desaparecem, não há lados sombrios ou lunares, tudo é sol e esplendor. De todos se diz o mesmo com pequenas variações: é uma grande perda para o país, mas fica a obra. Com sorte, um ano depois, um grupo de amigos promove um colóquio, uma exposição, a publicação de um livro. Segue-se uma atribuição toponímica e chega a imortalidade, via CTT. Passados os anos, se a placa toponímica não indicar qual a área em que o ilustre se destacou, poucos, tirando a família e os amigos que vão sobrevivendo, saberão quem foi aquela ou aquele que dá o nome à praceta, à rua, ao largo, à avenida, à alameda, ou ao aeroporto. Existem no entanto excepções que confirmam a regra. Mário Soares será uma delas.

Da longa carreira política não faltarão casos que servirão para alimentar admiradores e detratores e assim se construirá o mito que por alguns séculos irá perdurar. Poucos, muito poucos, são capazes de semelhante feito.

De uma vida dedicada de corpo e alma à política, no que ela tem de melhor e de pior, devemos a Soares uma coisa aparentemente simples sem a qual já não sabemos viver: a democracia.

Não se trata de atribuir a paternidade do actual regime, a terceira República, que ele preferia designar por segunda porque não aceitava que se pudesse contabilizar uma ditadura nesta genealogia (o que levanta outros problemas pois, seguindo essa lógica, seriamos tentados a designar por primeira a terceira, já que ao contrário do que sempre defendeu, o regime republicano implementado a 5 de Outubro de 1910 nunca chegou a ser de todos os republicanos e muito menos de todos os portugueses). Trata-se, sim, de lhe atribuir a paternidade da primeira experiência verdadeiramente democrática em Portugal. Mário Soares foi o principal artífice da implantação de um regime democrático em Portugal.

São muitas as críticas que se podem fazer ao actual regime, e por essa via, à sua figura tutelar. Mas acontece que Soares foi mais do que isso. Foi quem permitiu aos portugueses conhecer os vícios e as virtudes da “pior forma de governo, à excepção de todas os outras”, na feliz definição de Winston Churchill (com quem Soares aliás partilha várias características como o gosto pelos prazeres da vida, a capacidade de resistência perante as dificuldades, a força anímica e o optimismo). Parece pouco mas não é.

Não estava escrito nas estrelas que depois do regime constitucional monárquico, da I República, e do Estado Novo, emergiria um regime democrático pluralista. As ameaças, oriundas tanto da esquerda como da direita, cedo se fizeram sentir. O passado oposicionista, com a militância no Partido Comunista, a ruptura precoce e a longa travessia no deserto; as relações internacionais almejadas, cultivadas e alimentadas ao longo de décadas; a combatividade e uma aguçada perspicácia política, permitiram a Soares desempenhar um papel determinante num momento decisivo da história contemporânea portuguesa.

O mesmo destino poderia ter sido alcançado com outros protagonistas, mas teria sido certamente um trajecto mais longo e sinuoso, repleto de acidentes de percurso que provocariam feridas e cicatrizes difíceis de sarar e que deixaria muitos na berma da estrada.

A capacidade que os regimes democráticos têm de incluir aqueles que o desdenharam e que de ambos os extremos do espectro político o combateram, permitiu que em poucos anos fossem absorvidos os choques provocados pela vigência de um longo regime autoritário, pelo processo revolucionário e pelo fim dos ciclos imperiais. Também isso se deve em grande parte a Mário Soares.

O actual regime foi forjado neste turbilhão. São muitas, e muitas vezes pertinentes, as criticas que lhe são apontadas, mas poucos colocarão hoje em causa os princípios básicos da democracia. Foram estes princípios que estiveram em causa e foi por eles que Soares se destacou como líder civil no combate travado em 1974/75. Consciente da fragilidade dos alicerces ainda pouco profundos, procurou na Europa e na integração de Portugal no projecto europeu as escoras e os tirantes capazes de ajudar a suportar o peso de uma estrutura que nunca tinha sido completamente erguida no país.

A terceira república pode ser renovada ou substituida, mas dificilmente os portugueses estarão dispostos a abdicar das grandes regras democráticas que estão na sua base e com as quais convivem há quatro décadas. Esse é o grande legado de Mário Soares e não será facilmente posto em causa.

Mais do que o oposicionista, fundador e líder do PS, governante, Presidente da República, vencedor e derrotado em inúmeros combates eleitorais, Mário Soares deve ser lembrado como aquele a quem mais devemos uma já longa experiência democrática.

David Castaño

Historiador

IPRI-NOVA

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