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Working Paper n.º 29
A mistura explosiva da expansão demográfica, desemprego e narcotráfico na África Ocidental

27 | 08 | 2007
Victor Ângelo e Rui Flores

Introdução

Há uma mistura explosiva que pode fazer da África Ocidental uma espécie de “cocktail Molotov” de dimensão regional, cujos danos colaterais afectarão de sobremaneira a União Europeia (UE). As componentes desta mistura são a expansão demográfica, o desemprego e o narcotráfico. Os seus efeitos, aliás, já começaram a fazer-se sentir.

A África, mas particularmente a África Ocidental – a seguir ao Magrebe a região mais próxima desse grande porto de entrada na Europa que é a Península Ibérica –, constitui um conjunto de Estados marcadamente fragilizados ou, nalguns casos, à beira da falência institucional. Neste documento usaremos a definição de África Ocidental como o conjunto de 15 países que constituem a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO): Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.

E focaremos a atenção na África Ocidental não só pela sua proximidade geográfica com a Europa, mas também por se tratar de uma das zonas do Globo simultaneamente mais instáveis e mais pobres. Na região, nas duas últimos décadas, apenas Cabo Verde, Gana e o Senegal não sofreram golpes de Estado[i].

O índice de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)[ii] coloca 12 dos 15 países da CEDEAO no grupo dos 31 Estados mais pobres do mundo. Num universo de 177 países analisados, que não inclui a Libéria por falta de dados actualizados, o Togo aparece no lugar 147 da tabela, a Gâmbia em 155, o Senegal em 156, a Nigéria em 159, a Guiné em 160, o Benim em 163, a Costa do Marfim em 164, a Guiné-Bissau em 173, o Burkina Faso em 174, o Mali em 175, a Serra Leoa em 176 e o Níger em 177. As excepções à realidade dos países de baixo desenvolvimento humano na África Ocidental são Cabo Verde (106) e o Gana (136).

As marcas da fragilidade

Genericamente, estes países vivem com enormes dificuldades estruturais, que se reflectem na debilidade das suas instituições nacionais, afectando de sobremaneira a autoridade do Estado.[iii] As funções mais centrais do Estado não são desempenhadas com sucesso, havendo um quase vazio na execução dessas responsabilidades. Os serviços públicos não funcionam: as redes públicas de distribuição de água e electricidade operam deficiente e intermitentemente; as infraestruturas essenciais nunca foram construídas ou encontram-se destruídas desde a última guerra civil; faltam estradas, escolas, centros de saúde, saneamento básico.

Por outro lado, os Estados não garantem segurança aos cidadãos. As forças armadas e as polícias encontram-se sobredimensionadas, estão mal-equipadas, quase sem recursos, e constituem muitas vezes um factor de instabilidade, e nalguns casos até fugindo ao controlo da tutela política. Devido à sua própria ineficiência ou por estarem em conflito, os Estados também não são capazes de exercer a soberania nalgumas regiões do seu território, deixando-as entregues a milícias locais, empresas de segurança privadas ou mesmo a grupos armados, que aproveitam todas as oportunidades para extorquir dinheiro às populações em troca de alguns serviços de protecção. As suas frequentes actividades ilegais, nomeadamente do tipo de “check-points” (mas mais conhecidas como “cash-points”[iv]), são um entrave à liberdade de circulação e às trocas comerciais. Não raras vezes, esses grupos dedicam-se ao contrabando dos recursos naturais existentes, contribuindo ainda mais para a debilidade dos países. Aliás, por toda a região, os controlos fronteiriços, sejam nos aeroportos, sejam nos portos ou nas fronteiras terrestres, são extremamente deficientes, possibilitando toda a sorte de tráfico – de bens, substâncias ilícitas e até de pessoas. Ao mesmo tempo que não dominam partes do seu território, estes Estados também não garantem um controlo efectivo das actividades que têm lugar no mar, sendo incapazes de proteger os seus recursos marinhos da pesca ilícita, combater a emigração não legal ou lutar contra o contrabando ou pirataria. A ausência de controlo dos mares vai tornar-se a breve trecho num dos principais problemas destes países e numa ameaça séria à estabilidade internacional.

Embora tenham à sua disposição inúmeros recursos naturais (petróleo, diamantes, madeiras raras, ouro, minerais estratégicos), os Estados não os conseguem transformar em receitas para os seus cofres públicos, com os orçamentos a dependerem em grande parte das contribuições externas. Daqui advém que os Estados tenham de honrar certos compromissos internacionais, ao nível de reformas administrativas e fiscais, controlados pelas instituições de Bretton Woods (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional), que, ao fim de uma ou duas violações grosseiras, suspendem a ajuda orçamental, colocando os países à beira da ingovernabilidade, sem liquidez. A existência de vastos recursos naturais é, por outro lado, razão de ser de alguns conflitos, nacionais ou regionais, que têm na sua origem a procura da apropriação privada daqueles. As guerras na Libéria e na Serra Leoa nos anos 90 foram alimentadas pelos recursos provenientes da venda ilegal de diamantes, os tristemente célebres “diamantes de sangue”.

A maior parte destes Estados encontra-se ainda minada pelo vírus da corrupção. Trata-se de um problema que afecta de alto a baixo a estrutura do Estado, fazendo parte do “modus vivendi” destas sociedades. Não se trata apenas do alto governante que garante para si uma percentagem de um qualquer contrato estabelecido entre o Estado e uma companhia ou que se apropria de recursos provenientes da cooperação internacional. Ela é também visível no funcionário público que recebe dinheiro “por baixo da mesa”, para acelerar a produção de um documento administrativo, ou no procurador da república, que declara só avançar com a acusação em tribunal se a vítima se predispuser a pagar “luvas”. Aliás, a justiça, é outro dos sectores que contribuem fortemente para a debilidade dos Estados – e tal não se deve apenas à corrupção. Ao não garantir uma justiça minimamente eficaz, ao não conseguir estatuir o primado da Lei, o Estado demite-se de exercer uma das suas funções fundamentais e cria as condições para um avolumar da instabilidade no futuro.

Em parte, o problema da corrupção relaciona-se com a existência de uma legislação opaca, de difícil compreensão e aplicação, até. Uma legislação que é, na grande maioria dos casos, copiada directamente dos códigos vigentes nas antigas metrópoles coloniais, sem qualquer consideração pelos contextos histórico-sociais de cada país. Mas explica-se também por o Estado pagar pouco e a más horas. Na Guiné-Bissau, por exemplo, os funcionários públicos não recebem há quatro meses[v]. De uma maneira geral, os salários são baixos. Na Serra Leoa, um sub-inspector da polícia aufere 25 euros mensais, aos quais se acrescentam uns magros subsídios, nem sempre pagos a tempo e horas – enquanto uma saca de arroz de 50 quilos custa 16. A permanente disponibilidade exibida pelos cidadãos para a corrupção explica-se ainda pelo facto de, por toda a África Ocidental – num contraste flagrante com aquilo que se passa na Europa –, as pessoas viverem em famílias extremamente alargadas, concentrando-se na casa do elemento, na maior parte dos casos o único, que está empregado. Não é por isso raro que aquele magro salário tenha de sustentar 15 ou 20 bocas – a mulher e os filhos, os pais e os sogros, os irmãos e os sobrinhos e ainda mais alguns primos.

A explosão demográfica e o aumento do desemprego

O crescimento demográfico na região é enorme. De acordo com os dados disponíveis, a África Ocidental atingirá os 430 milhões de habitantes em 2020. Em 2004, a região seria constituída por 270 milhões de pessoas. Ou seja, em década e meia, a África Ocidental crescerá 150 milhões de pessoas[vi]. Os indicadores sobre a população mostram que nos últimos 40 anos houve uma tendência para os países quase triplicarem o seu número de habitantes. É o que acontece na Nigéria, um dos países mais populosos de África, que deverá chegar aos 160 milhões de habitantes, em 2015, quando tinha apenas 59 milhões, em 1975; no Senegal, que crescerá de pouco mais de 5 milhões, em 1975, para 14.5 milhões em 2015; ou no Mali, de 6 milhões para 18 milhões[vii]. As taxas de natalidade são elevadas, variando entre os 3,8 filhos por mulher, em Cabo Verde, e os 7,9, no Mali[viii], enquanto a mortalidade vai diminuindo, dando assim azo à explosão demográfica.

Isto provoca uma pressão urbanística incontrolável sobre as cidades já densamente povoadas. O ano de 2008, de acordo com os estudos mais recentes[ix], ficará para a História como aquele em que mais de metade da população mundial (3.3 mil milhões de pessoas) viverá em áreas urbanas. Muitos destes novos habitantes urbanos serão pobres e estarão alojados em barracas que se amontoarão nas orlas citadinas, nos leitos dos rios, nas ravinas, transformando-as em megalópolis infindáveis, sem o mínimo de condições sanitárias ou de conforto (para não referir os problemas de segurança), pondo em risco ainda mais o seu já frágil quadro ambiental.

Grande parte do crescimento urbano advém da explosão demográfica. Mas as migrações internas, do campo para a cidade, contribuem também de uma forma significativa para a expansão das metrópoles. E se a explosão demográfica, em si, já provoca graves problemas de segurança alimentar, mas sobretudo de escassez de água, as migrações do campo para as cidades desequilibram ainda mais a distribuição alimentar. São cada vez mais as pessoas que fogem do trabalho nos campos com o objectivo de ir à procura de um emprego nas cidades. A produção agrícola industrial é diminuta e dificilmente poderá contribuir para alimentar uma população cada vez mais vasta.

O problema do aumento da população é particularmente grave devido ao facto de o crescimento económico não acompanhar a explosão demográfica. O crescimento económico real na região foi de 3,4 por cento em 2004[x]. A economia destes Estados é extremamente débil e vive impulsionada pelo seu sector informal – a venda ambulante no meio do trânsito, a barraca/loja de bens de primeira necessidade, pequenas oficinas na sombra da árvore. A economia formal depende em grande medida do sector estatal, que é o principal empregador e o grande cliente no mercado formal de bens e serviços. Os Governos dificilmente conseguem atrair investimento estrangeiro, por causa, sobretudo, da ausência de infraestruturas e da corrupção.

As economias destes Estados não logram criar empregos, levando a que os jovens não tenham perspectivas de futuro. E eles são a grande maioria da população da África Ocidental: 45 por cento tem menos de 15 anos e 60 por cento menos de 30[xi]. Muitos fazem parte do sector informal da economia, quando não estão simplesmente desempregados. Ainda que comparativamente com os seus pais possuam uma formação académica mais avançada, nalguns casos de nível superior, isso não lhes garante, no entanto, uma vantagem competitiva considerável, engrossando também eles as hordas de desempregados. Embora não haja dados credíveis sobre as taxas de desemprego na região, de acordo com os estudos disponíveis[xii], metade das pessoas em idade laboral (dos 15 aos 64 anos) declaram-se autoempregadas. Este conceito de autoemprego está, contudo, muito distante da noção europeia de empresários em nome individual. Autoemprego significará que os jovens (e os adultos) têm uma ocupação ocasional que lhes permitirá garantir um rendimento intermitente. O desemprego é, pois, um dos factores que mais contribuem para a fragilidade dos Estados, sobretudo quando os jovens deixam de aceitar essa condição como inevitável e passam a colocar as culpas nos erros da governação e nas questões de desigualdade social.

Os jovens possuem perspectivas de futuro muito limitadas, mas têm um conhecimento profundo sobre a realidade dos outros países, pois conseguem aceder à televisão via-satélite e à Internet. Até nas aldeias mais remotas, com o auxílio de um pequeno gerador de corrente eléctrica, é possível pôr um computador “online” com o mundo. O sector das telecomunicações foi indiscutivelmente o que mais cresceu em África no Século XXI. Devido a este salto tecnológico, os jovens têm uma noção clara das incomensuráveis diferenças que separam os seus países daqueles que se encontram do outro lado do Atlântico ou do Mediterrâneo, a apenas algumas horas de voo de sua casa. Constatam as diferenças e acompanham com a mesma paixão os ídolos das juventudes europeias: Cristiano Ronaldo, por exemplo, é um desportista cujo nome é conhecido por toda a África Ocidental.[xiii]

Este quadro demográfico, social e económico é propício ao desenvolvimento de extremismos, sejam do tipo terrorista, como a Al-Qaida, ou de outros, que têm na juventude um exército de reserva radical à espera de um líder. O integrismo religioso tem-se substituído paulatinamente aos nacionalismos e socialismos do tempo da Guerra Fria como projectos políticos e de sociedade[xiv]. Ao mesmo tempo, alguns extremistas, aproveitando o descontentamento social generalizado, fazem ressurgir um certo discurso político anti-modelo ocidental, que tende a assentar numa “percepção africana” dos direitos humanos, num enfoque desmedido em tradições de difícil justificação no mundo de hoje, bem como no acentuar das diferenças de ordem religiosa.

O futuro destes jovens está, portanto, em risco e pode rapidamente constituir uma ameaça de difícil controlo à estabilidade dos seus próprios países e da comunidade internacional. Pressionados pelo desemprego e pela fome, pessimistas em relação às perspectivas de futuro, vêem na adesão a um grupo paramilitar ou integrista ou numa viagem sem fim a sua única saída – e por isso desaguam todas as semanas centenas de imigrantes ilegais nas costas das Canárias ou no Sul de Espanha, em Malta ou na “bota” italiana.

O “boom” do narcotráfico

Todos estes factores – a debilidade das instituições nacionais, a inexistência de infraestruturas e serviços públicos, a incapacidade de impor o primado da Lei – contribuem para afectar as estruturas dos Estados e torná-los vulneráveis a um fenómeno que está em evidente expansão na África Ocidental: o narcotráfico, protagonizado por grupos internacionais de criminalidade organizada. Estes grupos estão a transformar as fraquezas dos Estados nas suas próprias forças. É fácil recrutar jovens que se lhes queiram juntar. Encontram-se desocupados e ambicionam desesperadamente arranjar um sustento que lhes permita viver com um mínimo de dignidade. É fácil garantir que os agentes de polícia nas fronteiras assegurem que determinados passageiros não são revistados, mais as suas respectivas bagagens. É fácil fazer aterrar no aeroporto nacional ou numa outra pista um qualquer avião privado vindo da América do Sul e discreta e eficazmente descarregá-lo, fazendo depois a mercadoria seguir para a Europa, por barco ou em voos comerciais./span>

De acordo com os dados do Escritório da Nações Unidas para as Drogas e Crime (UNODC, na sigla anglo-saxónica)[xv], o aumento do número e da quantidade das apreensões de droga na região da África Ocidental indicia que o fenómeno tem vindo constantemente a crescer desde 1995, mas com especial destaque nos últimos seis anos, no que respeita à cocaína. De acordo com os dados mais recentes comunicados à Interpol, só no segundo trimestre deste ano, as autoridades nacionais dos países da África Ocidental apreenderam um total de 7 mil quilos de cocaína[xvi]. Mais: dois terços de toda a cocaína que entra na Europa passa pela África Ocidental[xvii]. Este aumento exponencial do tráfico de droga na região deve-se não só à fragilidade dos Estados mas ao facto de o negócio dos estupefacientes ser extremamente lucrativo, em particular o tráfico de cocaína e heroína.

Os exemplos surgem um pouco de toda a região. No final de Junho, em duas apreensões, as autoridades do Senegal confiscaram 2,4 toneladas de cocaína, que, a preços prevalecentes do mercado por atacado em Espanha, valeriam aproxidamente mais de 73 milhões de euros. Na Guiné-Bissau, em April, de acordo com a UNODC, a apreensão de 635 quilos de cocaína equivaleria, a preços prevalecentes do mercado por atacado da África Ocidental, a 8.5 milhões de euros. Vendida em Espanha, aquele que seria o seu mercado de destino, essa mesma quantidade de droga valeria 19.5 milhões de euros. O lucro obtido pela exportação desta quantidade de cocaína, de 11 milhões de euros, seria absolutamente extraordinário. Com base nos dados disponíveis de 2004, esse valor equivale a 20 por cento do total da ajuda internacional disponibilizada à Guiné-Bissau, a 14 por cento de todas as exportações do país e a 280 por cento do total do investimento internacional directo naquela antiga colónia portuguesa[xviii].

Dada a sua proximidade geográfica com a América do Sul, as costas dos países da África Ocidental e alguns dos seus portos como que se transformaram numa espécie de interface de passagem de estupefacientes. Ao mesmo tempo, os aeroportos internacionais da região são autênticas portas de saída em direcção aos novos mercados, particularmente de cocaína, na Europa, África do Sul e Médio Oriente.

A análise feita pela UNODC das frequentes apreensões operadas na África Ocidental e nos mercados de destino indicia que se está na presença de dois modos complementares de tráfico. O primeiro tipo, liderado por estrangeiros, oriundos na sua maior parte da América Latina (da Colômbia, Venezuela, México e Brasil, mas associados a espanhóis, da Galiza, italianos, da Calábria e da Sicília, franceses ou libaneses), transporta grandes quantidades de droga da América Latina, com origem na Colômbia mas com passagem pelo Brasil e Venezuela, para a região usando barcos, iates privados, e, mais recentemente, através de jactos privados. O segundo tipo de tráfico é feito por contrabandistas locais que compram pequenas quantidades de narcóticos (entre 500 gramas e 10 quilos) e as exportam através de correios humanos. Contudo, a disponibilidade crescente de cocaína na região levou ao estabelecimento de armazéns por toda a costa, o que veio facilitar o aumento do tráfico feito por locais e a existência de redes estruturadas capazes de adquirir e redistribuir centenas de quilos.

Em termos de contrabando aéreo, tendo em conta as apreensões conseguidas, a UNODC conclui pela existência de ambos os tipos de tráfico: o dos contrabandistas individuais (que levam consigo quantidades de cocaína não superiores a 10 quilos) e o das redes estruturadas (vários correios humanos no mesmo voo carregando até 60 quilos por envio). As autoridades europeias têm detectado contrabando de droga oriundo de quase todos os aeroportos da África Ocidental. Os correios humanos são nacionais da região mas também europeus, particularmente da Europa de Leste. Ultimamente, para dissimular o ponto de embarque, os correios humanos demonstram uma tendência para evitar rotas directas para a Europa, fazendo a viagem via Norte de África (Marrocos, Líbia, Argélia)[xix].

Recentes apreensões em Bruxelas e em Freetown vieram mostrar ainda uma conexão clara entre os serviços de “handling” de bagagem dos dois aeroportos, revelando a complexidade da estrutura do contrabando. As mercadorias enviadas para a Europa passavam ao lado do controlo alfandegário no aeroporto em Freetown e eram arrecadas em Bruxelas antes de chegarem à zona de fiscalização das bagagens.

Os exemplos referidos evidenciam como os Estados da região se encontram vulneráveis ao narcotráfico. A aparente facilidade com que os traficantes conseguem expedir grandes quantidades de droga revela, no mínimo, que os Estados não têm capacidade para lidar com este tipo de contrabando, ou, no máximo, como as próprias estruturas do Estado já foram penetradas pelas redes de crime organizado, fechando os olhos ao contrabando ou mesmo garantindo que ele se faz. Foi o próprio ministro do Interior da Guiné-Bissau quem revelou recentemente que haverá alegadamente altas autoridades do seu país implicadas no tráfico de cocaína, ao anunciar que o Estado não sabia onde paravam mais de 600 quilos de cocaína de uma apreensão que ocorreu em Setembro do ano passado[xx]. Na mesma entrevista, o ministro apelou à comunidade internacional para apoiar o Governo do seu país, que não dispõe de aviões, lanchas, veículos ou de um sistema de comunicação eficaz para fazer frente às organizações criminosas. É que mesmo que tudo funcionasse, se a polícia actuasse com eficácia, com os salários em dia e meios operacionais modernos, e a justiça se fizesse, seria difícil garantir uma eventual punição: é que o país nem de uma prisão dispõe. Tendo em conta todas estas envolventes, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) acaba de emitir um sinal de alerta em relação ao “aumento do crime organizado, narcotráfico e proliferação de armas ligeiras ilegais” na Guiné-Bissau, apelando à comunidade internacional para continuar a assistir o país no fortalecimento das suas instituições de segurança[xxi].

Mas o problema não é apenas da ausência de meios. Um pouco por toda a África Ocidental encontra-se uma certa relutância crónica de o poder político em tomar medidas que combatam eficazmente o tráfico de droga. É neste cenário que surgem os narco-Estados. Afinal, há quem veja a associação aos grupos de crime organizado apenas como uma tentativa de assegurar um modo de sustentar a sua família. A alternativa é o desemprego e a fome. Quando, no início de Julho deste ano, o Presidente do Brasil, “Lula” da Silva, anunciou o investimento de mais de 1,5 mil milhões de euros para urbanizar as principais favelas do Rio de Janeiro, através da construção de escolas e hospitais, resumiu numa frase a razão de ser da força dos traficantes: “Se o Estado não assumir o seu papel serão os narcotraficantes a fazê-lo.”[xxii]

Uma resposta colectiva

O combate ao narcotráfico pelas autoridades nacionais carece, pois, de uma inquebrantável vontade política para ser verdadeiramente eficaz e deve, antes de mais, procurar resolver as questões que levam as pessoas a aderir com facilidade a projectos criminosos. E precisa, indiscutivelmente, de assistência da comunidade internacional. Um apoio que vise o fortalecimento das instituições nacionais, com a reforma do sector da segurança a merecer especial atenção, sobretudo quando se adensam as suspeitas sobre o envolvimento de militares e de agentes de segurança no narcotráfico. Mas uma efectiva cooperação ao nível policial tem de ser posta em prática, seja via União Europeia, seja através da Interpol, de forma a ultrapassar as dificuldades que os Estados da região enfrentam quando procuram lutar contra as organizações criminosas que se dedicam ao narcotráfico. O intercâmbio policial não pode ser eficaz, por outro lado, se não houver uma verdadeira cooperação e desenvolvimento ao nível do sector da justiça e dos sistemas aduaneiros.

A resposta colectiva que se preconiza não visa, naturalmente, apenas enfrentar o problema do tráfico de droga, tem de contribuir para diminuir o impacto da explosão demográfica e, sobretudo, do desemprego. É necessário, por isso, apostar numa cooperação virada para o desenvolvimento que contribua para a criação efectiva de milhares de postos de trabalho na África Ocidental. Neste campo, é preciso desenvolver a formação profissional, apoiar o desenvolvimento empresarial, criar parcerias privadas e públicas – o investimento directo externo terá necessariamente de aumentar – e ser imaginativo: o sector do turismo na África Ocidental, onde se encontram, por exemplo, algumas das mais belas praias de todo o continente, pode ser uma indústria com futuro, gerando as receitas de que tanto os Estados precisam.

A própria União Europeia tem de, a breve trecho, equacionar as suas políticas de imigração, por um lado, e começar a dar sinais de abertura dos seus mercados, deixando cair algumas medidas proteccionistas, de décadas, à sua produção agrícola industrial, de modo a permitir que outras regiões se desenvolvam e consigam entrar com os seus produtos, em moldes competitivos, na Europa.

Por fim, dados os efeitos que o tráfico de droga produz (afectando a credibilidade das instituições nacionais e a autoridade dos Estados), os recursos que movimenta (e não apenas criminosos, já que as instâncias policiais lhes dedicam grande parte dos seus meios para o combater), o número de pessoas que envolve, o grau de dependência que cria e as vítimas que provoca (com as inveitáveis profundas consequências sociais), o narcotráfico transnacional, no mundo globalizado de hoje, em que as próprias organizações criminosas são multinacionais, deveria passar a ser equiparado à categoria de crime contra a Humanidade e cair na alçada do Tribunal Penal Internacional (TPI).

A noção de crime contra a Humanidade encontra-se definida no artigo 7. ° do Estatuto do TPI[xxiii], do qual já são parte 104 Estados. Os seus elementos essenciais são a necessidade do dolo (ataque ou conhecimento de um ataque), a escala do crime (a sua generalização ou sistematização) e o alvo (uma população civil). Os crimes contra a Humanidade precisam ainda de constituir “a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses actos ou tendo em vista a prossecução dessa política”[xxiv]. Na identificação dos actos abrangidos pela sua definição encontram-se situações como homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência à força de populações, “apartheid”; mas é aberta também a porta a outros que causem “intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves ou afectem a saúde mental ou física”[xxv] das pessoas. O próprio Estatuto do TPI possibilita, no entanto, a revisão dos elementos constitutivos dos crimes que se encontram sob a sua alçada, desde que aprovada por dois terços dos Estados partes[xxvi]. É no âmbito dessa possibilidade que se abre a discussão sobre a imperiosidade de incluir o crime de narcotráfico transnacional no âmbito da noção de crime contra a Humanidade, sempre e quando os Estados e os seus dirigentes nele se encontrarem envolvidos. Ao sobrepor o crime de narcotráfico transnacional (a partir de um determinado montante, evidentemente) à esfera da soberania dos Estados, a comunidade internacional estaria a dar um claro sinal no sentido de que ninguém se encontra acima da lei. E garantiria ainda que os responsáveis políticos dos narco-Estados não permanecerão impunes, pois passariam a ter de responder perante uma entidade que lhes é superior e que não controlam.

A definição do narcotráfico como crime contra a Humanidade carece, naturalmente, do envolvimento da ONU, que deveria servir de facilitador na obtenção do aval dos Estados-membros. Há, pelo menos, vontade do próprio secretário-geral das Nações Unidas de contribuir para enfrentar o número crescente de “desafios globais complexos que os Estados por si só não conseguem resolver”[xxvii]. Face à necessidade, evidente, de impor o primado da Lei e garantir eficácia no combate a um flagelo que afecta inúmeros países, esse entendimento, contudo, poderá não ser difícil de conseguir.

O envolvimento colectivo é, portanto, fundamental. Só com o empenho de grande parte da comunidade dos Estados se poderá contribuir para atenuar os efeitos de uma fórmula (explosão demográfica, desemprego e narcotráfico) que tem todas as condições para pôr em risco a estabilidade internacional.



[i] Ver “L’Environnement de Securité et le Processus de Construction de la Paix en Afrique de l’Ouest”, documento de trabalho do Escritório das Nações Unidas para a África Ocidental (UNOWA), Dakar, Março de 2007, disponível na Internet em www.un.org/unowa/.

[ii] “2006 World Human Development Report”, PNUD, disponível na Internet, em http://hdr.undp.org/.

[iii] Sobre as diferentes dimensões da fragilidade dos Estados, ver Victor Ângelo, “Reflexões sobre as Ameaças à Segurança Internacional”, Conferência Internacional sobre “Os Desafios da Segurança Internacional e a Cooperação no Âmbito da CPLP”, Lisboa, Assembleia da República, Junho de 2007.

[iv] “Youth Unemployment and Regional Insecurity in West Africa”, UNOWA issue papers, Dakar, Agosto de 2006, disponível na Internet em http://www.un.org/unowa/.

[v] “Relatório do Secretário-Geral sobre os desenvolvimentos na Guiné-Bissau e as actividades do Escritório das Nações Unidas de Apoio à Construção da Paz naquele país”, de 3 de Julho de 2007, disponível na Internet em http://www.un.org/Docs/sc/sgrep07.htm.

[vi] “Youth Unemployment and Regional Insecurity in West Africa”…

[vii] Dados do “2005 Human Development Report”, disponível na Internet em http://hdr.undp.org/.

[viii] “2005 Human Development Report”...

[ix] Ver “Situação da População Mundial 2007 – Desencadeando o Potencial do Crescimento Urbano”, Fundo das Nações Unidas para a População, Junho de 2007, disponível na Internet em www.unpfa.org.

[x] Dados da OCDE, citados em “L’Environnement de Securité...”

[xi] Ver “L’Environnement…”

[xii] Como o “Sierra Leone Human Development Report 2007”, PNUD, no prelo.

[xiii] Retrato da realidade da África Ocidental expresso em Victor Ângelo, “Reflexões sobre as Ameaças à Segurança Internacional”...

[xiv] “L’Environnement...”

[xv] Informação disponível na Internet em http://www.unodc.org/unodc/index.html. Ao contrário da cocaína, o contrabando de heroína parece revelar uma tendência para a diminuição nos últimos anos.

[xvi] Ver comunicado à imprensa da Interpol, a propósito da 8.ª reunião africana dos chefes de agênciais nacionais de combate ao tráfico de droga, de 9 de Julho de 2007, disponível na Internet em http://www.interpol.int/Public/ICPO/PressReleases/PR2007/PR200730.asp.

[xvii] Ver “Time”, de 9 de Julho de 2007.

[xviii] Dados disponíveis em “The Drug Trafficking Menace in West Africa – Briefing paper on the drug trafficking situation in West Africa”, Escritório Regional para a África Central e Ocidental da UNODC, Dakar, Junho de 2007.

[xix] Ver “The Drug Trafficking Menace in West Africa...”

[xx] Notícia da Agência Reuters, citando o ministro Baciro Dabo, de 1 de Junho de 2007, disponível na Internet em http://www.alertnet.org/thenews/newsdesk/L0135813.htm.

[xxi] “Security Council Press Statement on Guinea-Bissau”, de 10 de Julho de 2007, disponível na Internet em http://www.un.org/News/Press/docs/2007/sc9075.doc.htm.

[xxii] In “Público”, de 4 de Julho de 2007.

[xxiii] O Estatuto do Tribunal Penal Internacional encontra-se disponível na Internet em http://www.icc-cpi.int/library/about/officialjournal/Rome_Statute_English.pdf.

[xxiv] Art. 7.°, n.° 2, al. a).

[xxv] Art. 7.°, n.° 1, al. k).

[xxvi] Art. 9.°.

[xxvii] Intervenção de Ban-Ki-Moon no Royal Institute of International Affairs, em Londres, 11 de Julho de 2007, disponível na Internet em http://www.un.org/apps/sg/sgstats.asp?nid=2665.

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